Artigo

Ruy Barbosa e a Igualdade

Citar Ruy Barbosa é um clichê. Um dos maiores juristas e político dos mais destemidos que nosso país já teve, o “Águia de Haia” nos legou uma obra prima na forma de um discurso como paraninfo da turma de 1920 da Faculdade de Direito do Largo de São Francisco (SP), a sua “Oração aos moços”, livro obrigatório a qualquer neófito no direito.

Este livro, pródigo em frases bombásticas e – por que não? – premonitórias (vide o seu alerta ao governo de um país de analfabetos) possui uma passagem, em específico, que já devo ter visto citada em algumas dezenas de artigos, petições e livros. Mal citada, na vasta maioria das vezes, posto que normalmente é usada para defender uma idéia oposta da de Ruy (se me permitirem a intimidade).

Trata-se da famosa lição sobre a igualdade, que no livro ocupa três parágrafos, mas cujas citações freqüentemente reduzem-na a duas frases. Cito-as: “A regra da igualdade não consiste senão em quinhoar desigualmente aos desiguais, na medida em que se desigualam” pois “tratar com desigualdade a iguais, ou a desiguais com igualdade, seria desigualdade flagrante, e não igualdade real”.
Esse par de frases é usado por qualquer um que defenda mais intervenção coletiva no campo das relações sociais como meio de aplainar as desigualdades sociais. Mais distante da lição de Ruy Barbosa, impossível.
O jurista baiano recitava, ali, as lições de Aristóteles sobre justiça distributiva: A igualdade citada não é uma igualdade em sentido estrito, mas, antes, uma proporção a ser aplicada na divisão de objetos entre pessoas. Quem quiser se aprofundar, favor checar o livro V da Ética Nicomaquéia e a Política do Filósofo.

Nem é preciso, todavia, ir tão longe. Basta ler os benditos parágrafos da Oração na sua integralidade, no seu contexto. Basta que leiamos o que Ruy Barbosa efetivamente disse, e não o que desejamos que ele tenha dito ou defendido.

Suas palavras são inequívocas: quinhoar a cada qual segundo os seus méritos é a verdadeira regra da igualdade. Pretender “atribuir o mesmo a todos, como se todos se equivalessem” era, em suas palavras, uma “blasfêmia contra a razão e a fé”, que “não faria senão inaugurar, em vez da supremacia do trabalho, a organização da miséria”.
Acaso seria Ruy Barbosa um conservador reacionário da pior espécie, quase um defensor da imobilidade social? Jamais, pois em seguida ele nos lembra que “se a sociedade não pode igualar os que a natureza criou desiguais, cada um, nos limites da sua energia moral, pode reagir sobre as desigualdades nativas, pela educação, atividade e perseverança”.

Nosso grande jurista, vejam só, acreditava no indivíduo. Ele não cria – e na verdade, bateu-se quase toda a vida contra essa idéia – num estado (ou um coletivo qualquer, pois não existiam ONGs no seu tempo), poderoso o suficiente para nivelar os homens. Ali estaria, com certeza, a base da tirania.

A existência de uma desigualdade não é um mal em si, pois é parte inerente da vida em sociedade. Não basta a constatação de uma desigualdade para gerar uma ação de igual
intensidade em sentido contrário para anulá-la, mas a existência efetiva de uma razão para o tratamento desigual. Num exemplo simples, não é o tamanho do ofensor que conta na estipulação de uma pena, mas o tamanho da ofensa.
Em resumo: observada a relação direta entre a natureza da diferença (moral, intelectual, financeira, racial, sexual) e o objeto a ser distribuído, o tratamento diferenciado não somente é desejado, como também é necessário para que se atinja a igualdade real. O mais depende do esforço individual, não da pressão coletiva.

Creio que essa é a idéia de igualdade de Ruy Barbosa.