Cinema-verdade
24 de maio, domingo, 15h30min – de Itabuna.
Paulo acaba de descobrir o vencedor da Palma de Ouro no festival de Cannes – via Internet.
Meio irritado, liga para Peter, que atende.
– Alô?
– Que merda!
O carinho das duas palavras é suficiente para Peter reconhecer a voz.
– Diga, idiota.
– Pra mim, marmelada!
– Pra mim, não. Prefiro amendoim mesmo.
Mas só porque a castanha acabou aqui. Em compensação, a cerveja tá ótima. O que houve?
– Você tá onde? Marmelada porque Haneke ganhou a Palma de Ouro.
– Sério? Viva Michael maluco!
– Viva, não. Ele só ganhou porque Isabelle Huppert era a presidente do júri.
– Ah, qual é, só por que ela já trabalhou duas vezes com ele?
– Isso, aposto que ela foi pra Cannes pensando em como defender o filme do queridinho dela, e não em qual filme seria melhor de verdade.
Isso que dá colocar gente relacionada com um dos diretores…
– Ué, nada mais natural o presidente do júri ser alguém com ligação com algum diretor.
É o meio deles, ora. Você queria quem na presidência do júri de um festival de cinema?
Gustavo Kuerten?
– Seria uma boa idéia, brasileiro de responsa e adorado na França. Melhor que aquela puxasaco.
– Olha, como a cerveja tá uma delícia, vou fingir que não ouvi isso. De qualquer jeito, veja o outro lado da coisa. Ganhou um cara que vai na contra-mão desse pessoal que defende a
câmera tremida, como se ela tivesse epilepsia.
– É, isso é bom. E também ele não é daqueles que só porque projetam publicidade em cinemascope acham que fazem cinema.
– Sim, e como você mesmo diz, abre aspas, a publicidade é o cinema dos preguiçosos. Ou
dos que não têm nada a dizer, fecha aspas. Ou seja, o cinema venceu. Comemore!
– Ah… nem tanto. Torcia pra Bastardos Inglórios, você sabe.
– Tarantino não precisa mais de prêmio nenhum. E Huppert não daria nada pra ele nem reencarnada.
– Ele ganhou melhor ator, com o alemão, ou austríaco, sei lá. Christoph Waltz, acho. Mas
parece que o filme em si não é aquela coisa toda. Você deve ter lido, teve gente falando
que é o menos empolgante dele.
– Ah, eu sempre achei estranho imaginar o mesmo cara de Kill Bill e Pulp Fiction fazendo
um filme sobre a segunda guerra. Quer dizer, espero errar, mas ainda acho. A onda dele é
fazer tudo meio de brincs, mesmo quando é profundo do jeito dele. E não sei como ser
assim com o holocausto.
– Olha… a depender da situação, eu duvido até de Ronaldo Fenômeno, mas nunca de
Tarantino.
– Eu também. Você sabe que gosto violentamente de tudo que ele fez até hoje.
Todo dia, antes de dormir, rezo: “Ezequiel, 25:17…”. Ele é o único diretor que pode se
vangloriar de ter todos os filmes em minha dvdteca. Pra duvidar da capacidade desse cara, só mesmo com Alzheimer.
– Pois é. E o filme foi montado às pressas, a Universal até pediu um novo corte, mais curto.
De qualquer jeito, não faltou quem escrevesse declarações de amor ao filme.
– E o filme dele parece ser uma declaração de amor ao cinema também.
– É, li algo do tipo. Dizem que o dele, o de Resnais e o de Almodóvar colocam o cinema
maior que a vida.
– Nada mais verdadeiro.
– Também acho. E acho triste. A gente divagando sobre o que não viu nem vai ver tão cedo.
– E alguns a gente nem vai ver no cinema.
– É foda.
A ligação cai. Ou um dos dois desliga. Pouco importa.
Ele Sorri
Michael Haneke, 67, enfim levou a Palma de Ouro em Cannes por A Fita Branca (Das Weisse Band – Áustria/ França/ Alemanha, 2009). Nele, o austríaco nascido na Alemanha parece ter feito outro filme sobre o que de pior existe no ser humano – de novo.
Mas, pra surpresa de muita gente, dá pra encontrar foto desse mesmo cara até sorrindo.
E Eles também
Peter e Paulo são uma referência aos nomes de personagens (e apenas aos nomes, por favor!) de Funny Games – Violência Gratuita (1997), que tem versão americana de 2008 idêntica e dirigida também pelo próprio Haneke. Em ambas, na verdade, os personagens são Peter e Paul. Tenha medo deles. Mas não de Haneke. Vejam Caché (2005) e a Professora de Piano (2001). E não me culpem. (Embora nem tudo de Haneke tenha chegado no Brasil, os três estão disponíveis em DVD.)
Ps: Bastardos Inglórios tem estréia no Brasil prevista para 23 de outubro. Defendo uma boa gorjeta ao homem do calendário.