Artigo

O quarto de Rainer

Uma suíte.

– Mari… tá me ouvindo?

– Oi… tô.

– Na coluna desse mês, quero falar de Bukowski e Nabokov.

Ela volta para o quarto, onde tenta andar sem as lentes.

– Na Cinebar?

– Isso.

– Ela é de cinema, Theo.

– É porque gostaria mesmo de falar de nós dois, mas preciso de uma desculpa pra isso.

– Através de Bukowski e Nabokov?

– Isso. A gente tem citado muito os dois justamente nesses dias. E acho que eles falam muito não só de gente, como até da gente.

Mari encontra as lentes – ainda incapazes de fazerem o mesmo com a camisa, a calça e os outros membros da família.

– Você bem sabe, adoro Nabokov, e até gosto de alguma coisa de Bukowski, mas espero que le não fale muito da gente. Nem você como ele. Naquele documentário, o Born Into This, ele dá uma sequência de pontapés na mulher, a abestalhada com quem depois ele até casou. Lembra?

– Aham. Só não tenho certeza se foram vários pontapés, tapas, ou até, é possível, afagos bukowskianos. No fundo, e de um jeito bem próprio, ele amava as mulheres.

– Bukowski nunca amou as mulheres. Ele amava fêmeas. Ou melhor, trepava com elas – pra usar uma linguagem mais próxima da dele.

– Com mais ou menos freqüência, é normal pensar assim às vezes.

– E doente é transformar o às vezes em uma vez sem fim.

– Ah, Mari, os dois tinham escritas diferentes, vidas diferentes, e amavam de um jeito diferente. Pra resumir, Bukowski gostava de cerveja, Nabokov gostava de borboletas.

Era o jeito de cada um encarar a solidão pra escrever.

– Ah… se for para falar em solidão, melhor a gente convocar Rilke.

– Dele eu só li Cartas a um jovem poeta.

– Que você adorou, e que, apesar de muito bom, eu acho uma das coisas mais fracas que ele já fez. Ele foi, inclusive, o primeiro grande culpado por minha obsessão por Alemanha e Tchecoslováquia. Você sabe, não é?!

– Sei, sim. E, conhecendo como te conheço hoje, nunca te visualizaria com um moreno e sul-americano como eu.

– Quando a gente se conheceu, saquei logo que você era a dose certa da mestiçagem brasileira, com algo de tcheco adquirido pela vida e pelos livros. Mas, tenha certeza, eu não abriria a boca, e muito menos o ouvido, se soubesse que você pensava que Rilke era uma mulher. Quer dizer, hoje tenho intimidade suficiente para me referir a ele como Rainer, não acha?!

– Hum… você lembra do primeiro nome de Fassbinder?

– Rainer também.

– Sabe o que isso significa?

– Hum…, murmura Mari, em estágio avançado, de encontro à camisa. Que…

– Você vai deixar sua blusa aí, voltar pra cá e fazer um Rainer comigo.

– Ahn?!

– A gente vai fazer um filho que vai se chamar Rainer. Agora. Que acha?

– A tá. Adorei a ideia. Principalmente por Rainer, lógico.

– Essa é a Mari sutil e cruel que eu conheço.

– Ô, Theo… é porque tenho que trabalhar.

Você tá de férias.

– Eu escrevo, não tenho férias. Tenho é mais tempo livre pra ocupar com o teclado. E o mesmo vale pra você.

– O que vale pra mim é o seguinte, Theo: se não for trabalhar, fico sem emprego; se ficar sem emprego, a renda diminui; se a renda diminuir, passo a me preocupar em fazer dinheiro e, consequentemente, fico sem tempo pra ler e escrever.

Mari está pronta – mentira, ainda falta a jaqueta.

– Isso quer dizer…, sugere Theo.

– Que tenho que ir…

– E que quem escreve, na verdade, trabalha para não ter férias.

– É triste. E bonito. Mas tenho que ir… E a Cinebar, já tem um norte pra ela?

– Cinema, ora.

– Nabokov, Bukowski, Rilke…

– Estarão no meio.

– Não culpe o editor se ele perguntar para onde foi o cinema. Ou o bar. Sem trocadilho.

– Ele quer algo mais alcoólico que Bukowski?

E mais cinematográfico que Rilke e Nabokov? Se sim, tenho do meu lado Fassbinder, que vale pela soma da maioria dos cineastas vivos.

– Verdade. E agora eu vou de verdade. Só pegar minha bolsa, já tô atrasada.

– Tá bom. Volta logo.

– Volto, sim.

– Bom trabalho…

– Obrigada, Theo… Beijo. E até mais…

– Té…

Mari abre a porta e sai, mas não antes de dizer.

– Ah, e coloque mais alguém de cinema no texto, viu?!

– Pode deixar…

A beleza do caos…
Dessa vez peguei emprestado Mari e Theo de O Pequeno Caos (1966), de Rainer Werner Fassbinder. O curta, que tem ainda o próprio Fassbinder com apenas 21 anos no papel de Franz, é uma coisa que transborda um inconsequente e contagiante afeto pelo ato de ir ao cinema. E de um jeito bem alemão – o que, embora eu sinta, não faço ideia do que significa.

… e d’água em pedra
Outra maneira – mais fácil (e nem por isso desinteressante) – de ter um contato indireto com a mente juvenil de Fassbinder é assistir ao Gotas d’Água sobre Pedras Escaldantes (2000), de François Ozon, baseado em peça que o gênio-prodígio bávaro escreveu com – não duvidem – 19 anos. Muito bom.

Maria Nabokowski
Born Into This (2003), de John Dullaghan, é o ótimo documentário sobre vida e obra de Charles Bukowski, que tinha alguma ligação também com cinema, mas no que não posso me aprofundar pela falta de espaço.

Vejam o filme.

Com relação a Vladimir Nabokov, entre outras coisas, ele escreveu Lolita, com adaptações
de Stanley Kubrick (1962) e Adrian Lyne (1997), e Desespero, no qual se baseou Desespero – Uma Viagem para a Luz (1978), de Fassbinder.

Já Rainer Maria Rilke, bem, parte dele está em Asas do Desejo (1987), de Win Wenders.
Ah, antes que me esqueça, o californiano Bukowski, na verdade, nasceu na Alemanha.
Mari sabe do que fala.