Artigo

Os Amores de Morgana de Oxossi, o Negro Karl Marx e o Pensamento Único dos Petistas

Morgana de Oxossi acordou cedo no domingo. Escovou os cabelos, fez as tranças e ajeitou as miçangas. Estava nervosa. À tardinha iria encontrar o professor de filosofia, seu amado, o homem que a faz fremir. Ela o reconheceu de pronto, desde que o enxergou a primeira vez, na universidade. O parceiro de outros séculos, doutros terreiros, de casas de santo pretéritas. Uma querência fulminante se instalou entre ambos. Ele, um ateu nietzschiano, acostumado a devorar mocinhos e mocinhas, insasiável, mal podia supor que os seus dias se consumariam naquela mulher, quinze anos mais velha.

Mas amor é assim, dopamina pura, mistério, conclave de erês e grécias. O encontro foi na praça do são caetano. Morgana de Oxossi – num vestido cheio de estamparia, tridentes, margaridas, rosas, violetas e pássaros amarelos -, chegou antes do professor de filosofia. Dez minutos depois, o moço saltou do coletivo trajando calças coronhas, suspensório, blusa com pintura de foice e martelo, chapéu de couro miúdo na cabeça, chinelos de plástico. Ele era assim, tanto despojado quanto arrogante. Morgana de Oxossi se excitou, tomada por uma umidade há décadas dissimulada. Nas mãos, o professor de filosofia trazia poemas para a amada, na alma, a certeza de que seria impossível aquele enlace. Tão acostumado a deflorar adolescentes, como poderia, agora, beirando os cinquenta, enamorar-se daquela mulher quinze anos mais velha?

Mas amor é assim, norepinefrina, núcleo caudado, amígdala, bioquímica descontrolada. Beijaram-se ardorosamente sob o espreitar de mendigos, pipoqueiros e feirantes que se recolhiam. Em paralelo, na África, o negro Karl Marx ofertou uma bela lebre para exu. Duas décadas depois ele escreverá o capital, mal adivinhando o peso do seu pensamento sobre as costas do século xx. Ao voltar à europa, o negro Karl Marx abandonará a xigumbaza, esconderá os colares e guardará a sete chaves as imagens dos doze orixás, numa fétida mala de couro, no sótão, em segredo. Às sextas-feiras, porém, ninguém marque compromisso com ele. Trancará o quarto, abrirá a mala, porá as vestes ritualísticas, acenderá charutos, beberá aguardente, emprestará o seu orí àti ara. As ideias comunistas vieram da África.

Mas o negro Karl Marx não as anunciará em linguagem mística. Seria expulso para sempre da paideia. Melhor fingir-se de cientista, mitigar linguagem de homem branco, afiliar-se a academias, dizer-se agnóstico. Com sutileza copilar a palavra camarada, para que os mestres de capoeira, oprimidos, cantem nos becos de são salvador, “ê, vamo simbora camará”. Capoeira solidária, berimbau de todos, dança de raças e gêneros, negritude andrôgina, samba de roda. O negro Karl Marx aprendeu nos búzios de pai heráclito, um preto velho, feiticeiro do eterno devir – que sonharemos sempre o mundo equânime, a fraternidade universal, gomos e mais gomos do amor cósmico sobre todas as cabeças, gêrmen em cada ventre, a terra parindo super-homens, pontes entre o bicho e deus.

Os petistas ignoram tudo isso. Pensam que democracia se conquista com leis e decretos. São unívocos, vibram seus monocórdios, não abraçam qualquer outro senão o próprio espelho, o reflexo de um nada absoluto, incapaz de dar origem a alguma coisa. Os petistas trabalham friamente em busca de uma nação surda, reféns do pensamento único. Querem um enredo sem multiplicidade, sem alteridade, sem discriminação. Insuflam pretos, mulheres, gays, nordestinos, guetos, tribos, para que labutem uns com outros – inimigos. Os petistas não dançam, salvo essa valsa vermelha desbotada, essa ignorânica iconoclasta, essa subversão brasileira.

Os petistas pisam e escarnecem a oferenda que o negro Karl Marx pôs para xangô, naquela encruzilhada, entre Berlim e bonn. Cospem na cara do professor de filosofia, exigem que ele volte correndo às fileiras da mediocridade, que estude alemão e vire chucrute. Morgana de Oxossi mal entende as coisas do mundo, é uma pitonisa, uma sophia, uma mãe d’água, desvirtuada das regras apostólicas romanas. Lamenta os preconceitos do professor de filosofia, mas sonha com os abraços de outro pedagogo, mais leve e doce. O negro Karl Marx, agora vivendo num plano espiritual, virou entidade de luz, e faz lá seus trabalhos para que a fúria dos petistas cesse em breve hora. E oxalá/jesus voltará a reinar entre nós.