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Hermenêutica Jurídica Coparticipativa: A Influência de Peter Häberle na Jurisdição Constitucional Brasileira

O direito processual constitucional brasileiro incorporou dois mecanismos que estão contribuindo de forma significativa para a abertura da jurisdição constitucional à sociedade civil, quais sejam a Audiência Pública e a figura jurídica do Amicus Curiae. A título de exemplo,uma advogadaindígena, de forma inédita no Brasil, realizou, em agosto de 2008, uma sustentação oral perante o Supremo Tribunal Federal, por ocasião do julgamento “raposa/serra do sol”, na qualidade de “amigo da corte”. Esta benfazeja abertura processual à participação de vários atores e representantes das múltiplas etnias que compõem o povo brasileiro para a construção e desenvolvimento do nosso direito constitucional é tributária, em grande escala, aos ensinamentos de um jurista alemão, Peter Häberle, professor emérito da Universidade de Bayreuth e influente constitucionalista, não apenas na Alemanha, mas em vários países que adotaram o modelo de “justiça constitucional”.

Para Häberle, a Constituição deve ser entendida como uma ordem jurídica fundamental do Estado e da sociedade, não apenas no que atine à limitação do poder estatal, mas também como fundamento para o poder do Estado, abrangendo tanto Estado quanto sociedade. A jurisdição, segue o autor, como poder político, deve atuar, desde o princípio, para além do dogma da separação Estado/Sociedade, obrigando-se a seguir o modelo do pluralismo e da ampliação do direito processual constitucional relativo aos instrumentos de participação pluralista condizentes com uma “sociedade aberta”. Nada obstante, adverte o autor no sentido de que levar a sério a “sociedade aberta dos intérpretes da Constituição” não significa apenas assegurar uma garantia no âmbito processual, mas também que o conteúdo de sua interpretação constitucional seja, de certo modo, apreendido pelo Tribunal.

Os institutos processuais da Audiência Pública e do Amicus Curiae, previstos, respectivamente, nos § 1º e 2º, do artigo 6º, da Lei nº 9882/99, foram utilizados pelo STF em seis julgamentos de grande relevância, envolvendo os temas da ação afirmativa como mecanismo de combate à desigualdade racial, da “judicialização” da saúde, em especial do fornecimento pelo Estado de medicamentos de alto custo e sem previsão nos protocolos e diretrizes terapêuticas do SUS, da descriminalização do aborto nos casos de anencefalia do feto, veiculado pela ADPF 54, da importação de pneus usados frente à questão ambiental (ADPF 101),da possibilidade de realização de pesquisa científica com células-tronco embrionárias, eda (in)constitucionalidade da Lei 11.705/2008 que proíbe a venda de bebidas alcoólicas à beira das rodovias federais ou em terrenos contíguos com acesso direto a estas. Todos estes processos judiciais, que outrora seriam debatidos e julgados a portas fechadas, foram objeto de deliberação pública pela comunidade científica, professores, médicos, biólogos, religiosos, representantes das mais variadas entidades de classe e da sociedade civil em geral.

No caso específico do direito fundamental à saúde, foram ouvidos cinquenta especialistas, entre advogados, defensores públicos, promotores, magistrados, médicos, professores, técnicos de saúde, gestores e usuários do sistema único de saúde. Em toda a história do constitucionalismo brasileiro, nunca houve uma aproximação tão estreita entre os conceitos de “sociedade aberta” e “jurisdição constitucional”, de modo a forjar um direito processual constitucional enquanto direito do pluralismo e da participação, e a interpretação constitucional como processo público.