Artigo

Uma feliz gota d’água

Quando tudo começou em Porto Seguro, as noções de propriedade pública e privada se confundiam. O que importava para a cruz e a espada era deixar a marca do império português em cada vivente ou mineral antes que o fizessem os espanhóis. Tempos depois, as atenções de novo se voltaram para a Bahia e a região cacaueira sofreu semelhante confusão. A figura meio privada meio estatal do coronel afigurava-se como a personificação híbrida desses dois conceitos que, infelizmente, ainda teimam em se amalgamar nos dias de hoje.

O desmando é o grande equívoco do setor privado. Na democracia, infelizmente, também os setores públicos podem cometer excessos e, embriagados pelo poder, instrumentam-se com o que há de pior no sistema privado. Fazem-se, assim, as trevas. O estado vira dono das pessoas e da força do seu trabalho. Ninguém tem mais o direito de refletir publicamente.

É muito triste quando uma lição histórica — os vinte anos de ditadura — é esquecida e as pessoas confundem o público e o privado como nos velhos tempos em que a muralha verde significava o grande obstáculo entre a pobreza e o Eldorado. As piores demandas do espírito humano parecem intactas numa praia virgem recém- -descoberta ou numa praça moderna de uma urbe supostamente civilizada.

Admitir que alguém se aproximou tranquilamente de um monumento inaugurado há três dias a fim de cometeu vandalismos é bastante difícil para muitos de nós. Inacreditável que ainda falte a mínima noção de propriedade pública na educação familiar. Os limites entre o possuir e o zelar encontram- se embaralhados no interior das pessoas. Um incidente como este do Rio Vermelho, que depredou a estátua do escritor Jorge Amado pode ser terrível, mas também pode ser uma feliz gota d’água se assim o quisermos.

Há poucos dias, li uma notícia aterradora vinda de Manaus. Alunos de uma escola se recusaram a fazer um trabalho sobre cultura afro-brasileira e repudiaram a leitura de um romance de Jorge Amado porque, segundo eles, evangélicos, o texto promoveria o satanismo e as relações homossexuais. Além de Jubiabá, de Amado, e Casa Grande e Senzala, de Gilberto Freyre, outras obras fundamentais entraram nessa lista neo-inquisitorial. Os estudantes, em protesto, chegaram a montar barracas no pátio da escola numa cruzada insana, anacrônica e preconceituosa que chamou a atenção de lideranças de entidades sociais como a dos Direitos Humanos, o Movimento Religioso de Matriz Africana, a Comissão de Diversidade Sexual da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) e a Marcha Mundial das Mulheres.

Muito embora factualmente isolados, os dois episódios — a depredação da estátua do escritor em Salvador e a manifestação estudantil no Amazonas — guardam relações estreitas a serem investigadas com cautela e urgência. Líderes radicais devem ficar distantes das nossas instituições políticas e administrativas. Todo e qualquer tipo de lobby fundamentalista devem ser neutralizados antes que exerçam real influência em Brasília, estados e municípios. De fato, seria terrível se descobríssemos tarde demais como andava ameaçada a nossa recém-nascida democracia.