Artigo

Trato é trato

Cachoeira do Riachão estava a festejar seu cinquentenário de emancipação política da vizinha Rio Bonito, cidades do agreste da Paraíba. O rio Riachão Bonito cortava os dois municípios. Àquele localizado à margem direita; este à margem esquerda. Uma ponte os unia. Mas o forte bairrismo era fator de discórdia. Por conta disso, não era visto com bons olhos o rapaz de Cachoeira do Riachão que namorasse uma garota da vizinha cidade e vice-versa. Os empresários preferiam dar emprego aos filhos da cidade onde estavam estabelecidos e assim por diante. A origem dessa discórdia foi em razão de o Coronel Severino Silva, avô do atual prefeito, ter criado um movimento emancipacionista. Era uma raposa. Hábil. Entendia de politica como ninguém. Conseguiu o plebiscito e foi vitorioso. Esse fato despertou a ira dos Rio Bonitenses. Com a emancipação, foi o primeiro prefeito de Cachoeira do Riachão e também o primeiro Deputado da Região. Chegou à Câmara Federal. Mandava e desmandava em seu reduto político. Era o verdadeiro cacique. Estava a concorrer ao Senado da República quando veio a falecer.

Com a sua morte houve alternância no poder. O fato é que, quando daqueles dias, o prefeito da cidade aniversariante era Severino Neto, eleito que foi com uma margem expressiva de votos. Ao revés do seu avô, não mandava em nada. Quem mandava mesmo era a mulher dele, Dona Nazarena, mais conhecida por D. Naná. Nada era feito sem o seu prévio conhecimento e autorização.

Uma semana antes da data do evento comemorativo ao dia da cidade, D. Naná se reuniu com seus assessores para organização da pauta festiva. Ficou determinado logo de manhã, na alvorada, uma queima de fogos. Às 8h, missa a ser celebrada na Igreja de S. José pelo Bispo D. Deolindo. Às 10h., desfile das escolas municipais na Rua Cel. Raimundo Medeiros, local onde ficaria armado o palanque oficial. Por volta do meio-dia, seria servido um churrasco para o povo. O almoço para as autoridades, na sede da Fazenda Caiçara, de seu marido. Foi incluído no evento a partida de futebol contra a vizinha Rio Bonito, pelo intermunicipal. D. Naná, bem que tentou transferir a data da partida, sem êxito. Qualquer alteração na tabela prejudicaria o cronograma do campeonato. O grande temor da Primeira Dama era a vitória do time adversário nos gramados de sua terra, em data de seu aniversário. Se tal acontecesse, seria uma desgraça. Ela sabia da superioridade do esquadrão visitante, o líder do intermunicipal. O jogo estava marcado para as 15h. do dia 21.04., no Estádio Municipal de Cachoeira do Riachão. Era um dia de domingo.

D. Naná cuidou de tudo pessoalmente. Escolheu os fogos que seriam utilizados. Fiscalizou a armação do palanque oficial, até mesmo a pintura do meio-fio da rua em que ocorreria o desfile, cuidou. O Prefeito não dava palpite em nada e aí dele se o fizesse. Cuidou, ainda, de ligar para a Diocese de Riachão. Convidou autoridades civis e militares. Enfim, tomou todas as providências.

Despontava a manhã daquele dia festivo com uma saraivada de fogos. Depois do café manhã, servido na fazenda dos anfitriões, D. Deolindo se descolou à matriz de São José onde celebrou a missa em ação de graça pelo natalício da cidade.

Na rua principal, próximo ao palanque oficial, as pessoas se aglomeravam. Algumas crianças balançavam pequenas bandeiras com as cores da aniversariante e outras com a do Brasil. No coreto, a filarmônica entoava canções de Luiz Gonzaga, a exemplo de “Assum Preto”, “Asa Branca”, “Luar do Sertão”, “Súplica Cearense” e outras regionais. Em um determinado momento, ao som do Hino Nacional, ocorreu um rápido desfile. Já era por volta do meio-dia. O sol a pino. O calor infernal. Não tinha como prolongar o evento. O Bispo deu graças a Deus. D. Naná, do palanque, acenava para o povo. O prefeito também o fazia. Em meio à praça, funcionários da prefeitura organizavam a distribuição de churrasco e cerveja para os presentes.

Na Fazenda do alcaide, as autoridades lá se encontravam para o almoço. D. Naná mandou que servido fosse ensopado de tatú, de teiú, meninico de carneiro, sarapatel de carneiro, bode assado, galinhada, etc.…. tudo regado a vinho e cerveja.

Em meio àquele ambiente festivo, D. Naná não conseguia disfarçar a preocupação com a partida de futebol. Muito antes do almoço havia ordenado ao Presidente da Câmara, seu afilhado, que tomasse as providências no sentido de lhe informar quando da chegada do trio de arbitragem.

Estavam todos a se fartar quando soube da chegada. Era por volta das 14h. Fez avisar aos presentes que estava próximo ao horário do jogo. Saiu para o estádio levando o prefeito à reboque. Todos seguiram-na. O Bispo ficou a descansar.

No estágio, não se fez de rogada. Foi ao vestiário e procurou pelo arbitro. Chamou-o reservadamente e, na surdina, lhe falou da importância da vitória de sua cidade sobre a cidade vizinha, sobretudo por se tratar do cinquentenário e dos reflexos negativos que de eventual derrota adviriam, inclusive politicamente. Disse, ainda, que após o jogo que ele a procurasse. O seu extraordinário poder de persuasão acabou por convencer o arbitro.

Pontapé inicial. Começou o jogo. Bola lá, bola p’ra cá e com cerca de 10 minutos o primeiro gol da cidade vizinha. Com 25, outro; mas, o arbitro o anulou marcando impedimento. Num lance à toa, expulsou um jogador do time visitante. No sufoco, terminou o primeiro tempo, sem prorrogação.

Segundo tempo, a bola cruzou a área. “Gato Preto”, como era conhecido o goleiro do time visitante, pulou para interceptar a passagem da bola, vindo a se cochar involuntariamente com Zé de Aurino, atacante do time da casa. Lance normal. Mas, não perdeu a oportunidade e expulsou a “Gato Preto”. Foi uma perda considerável. O goleiro era muito bom. Não deixava passar nada. E assim foi conduzindo a partida.

Por volta dos 40 minutos, vendo que o time da casa ia perder o jogo, noutro lance igualmente duvidoso, marcou um pênalti. Zé de Aurino se posicionou para fazer a cobrança. Ele, o arbitro, caminhou em direção à pequena área e ficou próximo à trave esquerda. Autorizou a cobrança. O atacante se preparou para chute. Ele fez psiu! o goleiro se desconcentrou. Zé de Aurino chutou e… gooool.

Fogos, charanga e festa na arquibancada. O povo feliz…. No gramado é reiniciado o jogo. Apito final. No caminho ao vestiário se encontrou com D. Naná que já o esperava. Dirigiu-se a ela e disse: Deu empate! Ao que ela respondeu: não me interessa, trato é trato.