Artigo

Memórias de um juiz de paz

O assunto mexe tanto comigo que hoje vou preferir mais divagar que relatar. Abrindo agenda onde registrava audiências feitas durante minha atuação (caturrice de macróbio metido a historiador…) deparo uma que me marcou profundamente. Era domingo 14 de maio de 1978, terminara de almoçar alegremente com a família comemorando o Dia das Mães, quando o policial bateu à porta trazendo um menino e junto uma senhora chorando copiosamente.

Fora enviado pelo Delegado, para que eu tentasse resolver o caso. Após levantar a mulher que se ajoelhara aos meus pés, fi-la sentar e tomar um copo de água. A criança tinha na face uma expressão dura, sendo mostrada naqueles seus cinco anos, como se tivesse saltado do estágio infantil para um choque com a realidade adulta. Certamente não vivendo o período de inocência da infância, passara diretamente para a crueza da vida madura, como se saltasse do estágio infantil ao choque com uma realidade à qual não estava preparado.

O soldado entregou-me a faca que lhe tomara, evitando assim o assassinatodo amásio de sua mãe. Ao perguntar-lhe se naquele dia de tantas alegrias teria mesmo coragem de tirar a vida de alguém, olhou-me de frente dizendo “num tenho alegria de nada, prá eu matar quarqué um é cumo mijar”! Ali estava um protótipo da distorção de personalidade, resultado do ambiente que o cercava, sem direito a boas emoções ou viver como criança, amadurecendo de maneira forçada e, por isso mesmo, tornando-se insensível a valores positivos.

Certa vez, ouvi do querido professor e saudoso amigo Promotor Waly Lima, nos casos de deliquência a psicanálise ensina que um motivo vem da pessoa e outro do ambiente. Aquela criança ali, seguramente não tivera bons exemplos, sendo lançada precocemente na dura realidade da vida.

Estava crescendo acostumada a vagar pelas ruas, passar fome, presenciar e até praticar roubos, além de ver um estranho transando com sua mãe além de bater nela. Todos nós seres humanos temos componentes do bem e do mal, porém para construir monstros pode-se explicar muita coisa através do ambiente. Vivemos sob comportamentos, ética, regras dentro de casa, mas pessoas como essas, às vezes, estão soltas na rua. Estava bem ali na minha frente, uma criança desde cedo convivendo num meio em que a violência é apenas uma banalidade, coisa comum do dia-a-dia. Conheço um provérbio chinês que diz: “as más companhias são como um mercado de peixe; acaba-se acostumando com o cheiro”.

Puxei conversa com o garoto, convenci- o aceitar um prato de comida e cheguei ao cúmulo de arrancar-lhe algum sorriso. Assim, descobri que a razão do seu ódio e disposição para matar aquele homem era simplesmente fidelidade e reconhecimento em relação à figura materna, ao confessar-me: “desde que nasci ela se lascou por mim. Agora quero mais é cuidar dela…”