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Reflexões sobre variações linguísticas e o ensino da língua materno

Marcos Bagno, em seu livro Preconceito linguístico: o que é, como se faz (Edições Loyola, 1999), defende que “o brasileiro sabe o seu português, o português do Brasil, que é a língua materna de todos os que nascem e vivem aqui”. Essa assertiva traz de forma clara o conceito de língua materna, porém, como o ensino da língua no Brasil sempre tomou por base a norma gramatical de Portugal, as regras que os alunos aprendem na escola, em boa parte, não correspondem à língua que realmente falam.

Assim, o português é considerado pela maioria dos falantes uma língua difícil, à medida que são decorados conceitos e regras que nada significam. Do mesmo modo, o fato de o ensino nas escolas não reconhecer outras normas lingüísticas, além da padrão, essa língua se torna estrangeira para o aluno que chega à escola proveniente de ambientes sociais, nos quais a norma lingüística empregada no cotidiano é uma variedade de português não-padrão.

O fato de o português, no Brasil, ser a língua da imensa maioria da população, não implica, automaticamente, que esse português seja um bloco compacto, coeso e homogêneo. Conforme os PCN’s (Parâmetros Curriculares Nacionais, 1998), a realidade lingüística brasileira é marcada pela diversidade. Quando se fala em Língua Portuguesa está se falando de uma unidade que se constitui de muitas variedades.

Na visão de Sírio Possenti em seu livro Por que (não) ensinar gramática na escola (Mercado de Letras, 1996), há fatores externos à língua que condicionam a sua variação, tais como: geográficos, de classe, de idade, de sexo, de etnia, de profissão, dentre outros.

Pessoas que moram em lugares diferentes acabam caracterizando-se por falar de algum modo de maneira diferente em relação a outro grupo. Pessoas que pertencem a classes sociais diferentes, do mesmo modo acabam caracterizando sua fala por traços diversos em relação aos de outra classe. O mesmo vale para diferentes sexos, idades, etnias, profissões.

Apresenta também fatores internos responsáveis por essas variações, pois de alguma forma, as formas lingüísticas diversas são regradas por uma gramática interior da língua. Do mesmo modo, Bagno considera a língua falada como um português que apresenta um alto grau de diversidade e de variabilidade, não só por causa da extensão territorial de país, mas por causa da injustiça social que faz do Brasil o segundo país com a pior distribuição de renda em todo o mundo. Assim, as diferenças de status social explicam o abismo lingüístico entre os falantes das variedades não-padrão do português brasileiro e os falantes da (suposta) variedade culta. As variedades do português nãopadrão possuem sua gramática particular, que, no entanto, não é reconhecida como válida, que é desprestigiada e ridicularizada por parte dos falantes do português-padrão, ou daqueles que a tomam como referência ideal.

O que se propõe nesta reflexão não é, contudo, que seja abolido da escola o estudo da língua padrão, pois como afirma Possenti, o papel da escola é ensinar língua-padrão ou, talvez, o de criar condições para que ela seja aprendida. E nesse sentido, o autor dialoga com Magda Soares (1986), quando a autora expõe: um ensino de língua materna comprometido com a luta contra as desigualdades sociais e econômicas reconhece, no quadro das relações entre a escola e a sociedade, o direito que têm as camadas populares de apropriar-se do dialeto de prestígio, e fixa-se como objetivo levar os alunos pertencentes a essas camadas a dominá-lo, a fim de que adquiram um instrumento fundamental para a participação política e a luta contra as desigualdades sociais.

Para além de um ensino repleto de preconceitos lingüísticos, o que se pretende a partir destas reflexões, é destacar a importância de um ensino da língua materna que valorize as variedades lingüísticas, sendo inclusivo, mostrando que não existe nenhuma variedade que seja intrinsecamente “melhor”, “mais pura”, “mais correta” que a outra. Toda variedade lingüística atende às necessidades da comunidade de seres humanos que a empregam e quando deixar de atender, ela, inevitavelmente, sofrerá transformações para se adequar às novas necessidades.

Portanto, o professor de língua deve adotar uma postura crítica em relação a seu próprio objeto de trabalho: a norma culta. O professor deve refletir sobre essa norma e não apenas repetila, limitando-se a transmitir uma doutrina gramatical normativa. É necessário lançar dúvidas sobre a mesma, questionar a validade daquelas explicações, filtrá-las, tomando por base seu próprio saber lingüístico, valorizando-o.

Cabe ao professor, assim, o papel de pesquisador em tempo integral, a fim de descobrir com seus alunos métodos inteligentes e prazerosos para que os mesmos deduzam essas regras em textos vivos, coerentes, bem construídos, interessantes, diversos, tanto de língua oral como escrita, pois a língua é viva, dinâmica e não um mero pacote fechado.

BAGNO, Marcos. Preconceito Linguístico: o que é, como se faz. 21ª ed. São Paulo: Loyola, 1999. POSSENTI, Sírio. Por que (não) ensinar gramática na escola. Campinas, SP: Mercado de Letras/ Associação de Leitura do Brasil, 1996.

SOARES, Magda. Linguagem e escola: uma perspectiva social. 15 ed. São Paulo, Ática, 1986