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Reforma Procedimental no CPP versus Procedimentos Especiais

A lei 11.719/08 reformou o procedimento comum ordinário no Código de Processo Penal, inaugurando uma discussão acerca do momento exato em que ocorreria o recebimento da inicial acusatória. A celeuma é de vultosa importância, tendo em vista que o recebimento da denúncia (ou queixa) traz diversas implicações, dentre as quais, a interrupção da prescrição (art. 117, I, CP) e a desconfiguração do arrependimento posterior (art. 16, CP).

Formou-se uma corrente entre os processualistas defendendo que o recebimento da denúncia ocorreria anteriormente à resposta do réu prevista no art. 396-A, do CPP. Assim, o juiz, caso não rejeite a peça inicial liminarmente, deve recebê-la e citar o réu para oferecer uma defesa preliminar. Esta é a corrente predominante na doutrina hoje.

Entretanto, a corrente minoritária defende que o recebimento da denúncia só ocorreria após a apresentação da peça de defesa e da verificação pelo juiz da inaplicabilidade da absolvição sumária ao caso (art. 399, CPP). Segundo estes doutrinadores, o recebimento a que se refere o art. 396 do CPP seria um “recebimento físico” da peça e não a admissão jurídica da acusação.

Destarte, conclui-se que para aquela primeira posição já haveria relação processual ab initio, existindo, contudo, a possibilidade desta encerrar-se numa fase inicial, sem necessidade de submeter o acusado a um desgastante e baldado processo penal. Já para a segunda, seria ainda mais simples, posto que o processo propriamente dito começaria apenas depois da manifestação da defesa e do despacho de admissão da acusação, se for o caso.

Questão interessante, neste ponto, é saber se teria havido revogação tácita ou não do art. 514, que estabelece uma defesa preliminar anterior ao recebimento da denúncia, no procedimento especial dos crimes afiançáveis praticados por funcionário público. Vejamos.

O § 4º do art. 394, do CPP determina que a resposta à acusação (art. 396-A) e a Absolvição Sumária (art. 397) devem ser aplicados a todos os procedimentos de primeiro grau, ainda que não regulados pelo Código.

Na hipótese de prevalecer o primeiro entendimento apontado é imperioso reconhecer que revogação tácita não há, pois que a defesa preliminar do art. 514 é anterior ao recebimento da denúncia, o que possibilita ao acusado obstar o nascimento do processo. Logo, o funcionário público denunciado por crime afiançável tem, com base nesta corrente, duas peças defensivas a oferecer: a primeira antes do recebimento, baseada no art. 514; a segunda após, com fundamento no art. 396-A.

Adotado o segundo posicionamento, observa-se que a matéria regulada pelo art. 514 foi totalmente disciplinada pelo art. 396-A c/c art. 394, §4º e que haveria revogação tácita alicerçada pelo art. 2º, §1º, da LICC.

A segunda corrente de pensamento parece ser a mais condizente com o direito penal moderno e garantista, porquanto daria ao acusado a possibilidade de se defender de uma acusação antes do processo propriamente dito iniciar, tal com já ocorria no procedimento dos crimes praticados por funcionário público (art. 514, CPP). No entanto, esta não é a melhor hermenêutica.

Consoante o exposto, a doutrina dominante coaduna melhor os objetivos da reforma com os institutos do Direito Processual Penal, afinal, não há como se falar em absolver sumariamente quem nem chegou a ser processado. Ademais, o art. 396 é expresso ao prever a citação do acusado, o que denota o início de uma relação triangularizada, típica dos processos judiciais.

Tal conclusão teria aplicabilidade nos procedimentos especiais não previstos no CPP, a exemplo da Lei de Tóxicos (Lei 11.343/06), que em seu art.55 institui a notificação do acusado para apresentação de defesa preliminar anterior ao recebimento da denúncia e conseqüente instauração do processo.

Verifica-se, deste modo, que não houve revogação tácita do art. 514 pelo art. 396, ambos do CPP, muito pelo contrário, tais institutos convivem harmonicamente, aplicando ao caso o art. 2º, §2º da LICC: “Art.2º(…)§ 2o: A lei nova, que estabeleça disposições gerais ou especiais a par das já existentes, não revoga nem modifica a lei anterior” .