Artigo

Marlon Brando me ligou

Em uma locadora, a sessão de clássicos europeus é habitada por Natália e Marcos – recém migrado de território asiático. Ela segura um DVD em uma mão e fuça com a outra, enquanto Marcos apenas observa – a prateleira. Não acostumado à falta de coordenação motora de Natália, o filme escorrega e cai, antes de ser prontamente apanhado por Marcos. A queda foi um acidente, mas essa certeza só nós temos – além, é claro, da própria destrambelhada. Marcos, na dúvida, acha que aquilo foi um descarado convite ao ato – de ver filmes, pelo menos.

– A Aventura? Meu Antonioni preferido…, diz
ele, que acha o filme bonito. E um saco.
– Hum… vou rever… – responde Natália, querendo sublinhar que aventura mesmo foi o pouso de emergência do DVD.

– Gostou quando viu?
– Um pouco.
– Eu também não gostei muito de primeira, mas depois adorei…
– Que assim seja comigo… E dele, você gosta assim também?
– pergunta, apontando com o queixo para a camisa de Marcos, uma homenagem a O Selvagem, de 1953, e Marlon Brando.
– Gosto sim, mas não acho o melhor Brando da época. Até pelo filme, prefiro ele em Uma Rua Chamada Pecado.
– Mas ali tem muito do texto de Tennesse…
Williams… que é f… fantástico!
– Eu prefiro Alabama Whitman…
– Como?
– Eu não li a peça original dele, mas dizem ser muito boa mesmo…
– É ótima, não muda muito do filme não.
– E de O Selvagem, você gosta?
– Gosto, mas vi há muito tempo. Só lembro de Marlon Brando dono de cada cena no filme…
– Ele tinha essa mania…
– É, é fácil ser bonito. Difícil é ter o talento dele Johnny Depp que o diga…
– Como assim?
– Digo, Johnny Depp é basicamente uma versão atual e piorada de Brando. Além de bom ator e com carisma, tem aquela beleza que consegue agradar a todo mundo sem ser banal, e tem presença de cena. A câmera não só gosta como tem ciúmes deles, sabe?!
– A câmera sempre teve bom gosto. E problemas com a monogamia.
– Pois é… mas o ponto é que, quarentão quase cinqüentão, Johnny Depp não faz o que o Brando quarentão e cinquentão fez nos anos 70, com O Poderoso Chefão e Apocalipse Now. Eram papéis nada a ver com o Brando dos anos 50, que já tinha revolucionado tudo. Já Johnny Depp fica entre Jack Sparrow e as bizarrices de Tim Burton, o que ele já fazia desde antes de ser alguma coisa…
– É, faz sentido… – diz Marcos, que sente o vibrar de seu telefone. Olha, vê que é seu irmão, e discretamente recoloca o celular no bolso. Volta seu pensamento à conversa e, embora não concorde exatamente com Natália, percebe que a idéia dela flerta com um mínimo de nexo. Para evitar desavenças, continua… – Mas Brando é Brando… E Coppola é Coppola…
– Não sou fã de Coppola, o Francis… na verdade até que gosto dessa fase anos 70, mas só dos dois Chefões e de A Conversação. A partir de Apocalipse Now, que ainda gosto, ele fica meio comum…
– Comum?
– É… pra resumir, digamos que no começo ele parecia um diretor que conciliava talento e pretensão, com lapsos de autor forte, quase a estampa de gênio. Depois ele continuou como um diretor que conseguia um equilíbrio entre talento e pretensão, só que burocrata demais e autor de menos pro meu gosto…
– justifica Natália.
– Não gosto de cravar essas coisas, sempre mudo de ideia, mas acho que Apocalipse Now é o melhor filme de guerra que eu já vi. Aliás, tem Vá e Veja… e, ah meu Deus, tem Underground de Kusturica também…
– Eu tento, mas não consigo gostar de verdade de Kusturica…
– Você apela pra Marlon Brando pra desmerecer Johnny Depp, fala mal de Coppola e, o pior, consegue não adorar Underground, o atestado definitivo de escrotidão; você merece morrer sozinha e sem filmes, sua abestalhada!, pensou, antes de dizer…
-Tente mais, ele vale a pena…
Marcos sente o telefone outra vez. Enquanto o traz para o ouvido, gesticula um pedido de licença para Natália, que não larga Antonioni e continua sua busca.
– Alô?!… Sim… Tô na rua ainda… Não, não devo demorar não. Só pegar uns filmes aqui e vou pra casa… Pronto, tá bom então… beijo… tchau.
Marcos recoloca o celular no bolso e caminha para a sessão nacional. Ele não falava com seu irmão, nem com sua irmã – muito menos com Sofia Coppola. Na verdade, ninguém ligou: era apenas um lembrete.

Undergound
Em uma locadora, a sessão de clássicos europeus é habitada por Natália e Marcos – recém migrado de território asiático. Ela segura um DVD em uma mão e fuça com a outra, enquanto Marcos apenas observa – a prateleira. Não acostumado à falta de coordenação motora de Natália, o filme escorrega e cai, antes de ser prontamente apanhado por Marcos. A queda foi um acidente, mas essa certeza só nós temos – além, é claro, da própria destrambelhada. Marcos, na dúvida, acha que aquilo foi um descarado convite ao ato – de ver filmes, pelo menos.

Trabalho
Em uma locadora, a sessão de clássicos europeus é habitada por Natália e Marcos – recém migrado de território asiático. Ela segura um DVD em uma mão e fuça com a outra, enquanto Marcos apenas observa – a prateleira. Não acostumado à falta de coordenação motora de Natália, o filme escorrega e cai, antes de ser prontamente apanhado por Marcos. A queda foi um acidente, mas essa certeza só nós temos – além, é claro, da própria destrambelhada. Marcos, na dúvida, acha que aquilo foi um descarado convite ao ato – de ver filmes, pelo menos.