Artigo

Par ou ímpar (ou de sexta a Domingos)

Paulo e Edu acabam de chegar num bar. Sentam e chamam o garçom. Pedem uma cerveja e esperam.

– … Glauber Rocha… – divaga Paulo
– Sim… – rebate Edu
– … Rogério Sganzerla…
– Que que tem?
– … Domingos de Oliveira…
– Bom também.
– …Nelson Pereira dos Santos… – continua Paulo, olhando as nuvens. Num céu azul.
– Tá escalando sua seleção brasileira é?
– … Truffaut… Godard…
– Ok, fomos pra França. Lindo. Você sabe que não sou ufanista nem xenófobo…
– … Orson Welles… Chaplin… – a mente de Paulo se aproxima da era de Aquário
– Que diabos é isso, hein?! Seu “pai-nosso” é?
– Aliás, Orson Welles e Chaplin vão lá pra trás.
– Tá, tá… eu também sou politeísta, mas não me importo com a ordem – diz Edu, que procura o garçom. Não acha.
– Eles não eram só aquela coisa de diretor autor. Eram mais – retorna Paulo.
Edu pensa. É interrompido.
– Eles também faziam outras coisas, escreviam outras coisas… pensavam, sabe?!
– Nelson Pereira dos Santos?
– O cara tá na Academia Brasileira de Letras.
– Não sabia.
– Não sabia?, se indigna Paulo. Desde 2006 ele tá lá!
– Ah, desculpa… tem muito tempo que não ligo pra lá.
– Você sabe quem é o patrono da cadeira dele?
– Quem? Mario Peixoto? Machado de Assis? Sei lá. Shakespeare?
– É. Shakespeare. Que pegou a cadeira de Homero, no ano 13 d.C. – Homero tava na décima reencarnação, e Shakespeare no primeiro de seus 18 ensaios pra enfim nascer.
– Sempre desconfiei disso – fala Edu, todo serelepe.
– Só que aí veio Castro Alves. Ele não só juntou o talento de Shakespeare e Homero, como roubou a cadeira 7 da Academia Brasileira de Letras. Levantou em 2006 porque tava entediado e queria mudar de assento, que o inspirasse mais. Aí Nelson Pereira… pluft! Aproveitou.
– A gente falava de quê mesmo?
– Não sei, sua burrice me desconcentra – alega Paulo.
– Shakespeare… Chaplin… Inglaterra! O Campeonato Inglês tá bom, hein? Sou Arsenal, mas esse ano dá Manchester ou Liverpool. Você aposta em quem?
– Não, a gente não falava de Inglaterra, nem de futebol. A gente falava de gente que tinha algo além do talento.
– Hum… tipo Nick Hornby. Ele escreve também, o filme Alta Fidelidade é baseado no livro dele. Mas aí é o algo além, o talento dele é torcer pelo Arsenal. Você já leu Febre de Bola?
– Não, nem quero – frisa Paulo. Saia da Inglaterra, desça o canal da Mancha.
– Hum… ok… você quer falar de Godard? De Domingos de Oliveira?
– Isso, deles que falava.
– As únicas coisas que os dois têm em comum é o cinema e o sexo masculino, como é que você quer falar sobre eles?
– Justamente! Têm em comum o cinema, que é do que a gente tá falando. E, como disse, eles fazem outra coisa, são multi-uso. O Domingos, mesmo, atua bem, escreve peças, e dirige com uma sutileza fina – se é que existe sutileza grossa. De qualquer jeito, parece que, na hora da gravação, quando ele tem uma crise extrema de prolixidade, ele diz pros atores: “troquem idéia”.
– Faz sentido. Mas não dá pra dizer o mesmo de Godard…, lembra Edu.
– É… mas Godard é gênio, já escreveu coisas sensacionais sobre cinema e o pensar cinema. Problema é que ele sabe falar coisas desagradáveis e fazer filmes desagradáveis. Mas, acontece. Já Domingos de Oliveira é um cara que parece estar sempre rindo da vida, que ri dele. E com ele. Os dois são amantes.
– Não, Paulo. Domingos de Oliveira deixou todas as mulheres do mundo pra ficar com Leila Diniz. Você não viu o filme? Só que ali era Paulo, interpretado por Paulo José – e Leila Diniz ela mesma.
– Mas Leila não se separou de Domingos antes do filme ser lançado? Ah, não importa. O que importa é que ela faz falta uma danada, hein?!
– Pois é, filmes como Todas as Mulheres do Mundo também.
– Taí, eu duvido que você ache, na história do cinema, uma disputa de par ou ímpar tão inusitada, tão genial como aquela?
– Você foi super pretensioso agora.
– Ah, Edu, saber ser pretensioso, além de atrair a atenção, é charmoso pelo ar de cobiça alcançável. Mas não fuja da pergunta. Já viu ou não?
– Não, não que eu me lembre. Mas, é aquela coisa, a quantidade de filmes a serem vistos é sempre maior que a dos filmes que a gente já viu. Então, não dá pra confirmar. De qualquer jeito, a gente parou em Domingos de Oliveira, e você não falou do resto. Você queria dizer o que mesmo?
– Ah, sei lá, tava divagando – diz Paulo.
– Jura? Nunca vi essa cena.
– Mas a cena do par ou ímpar…
– Bem, umas 20 vezes. É ótima mesmo…
– Deu vontade de rever o filme até. Acho que é o que vou fazer quando chegar em casa.
O garçom chega com a cerveja, abre e despeja no copo dos dois.
– É, mas antes tem ela aqui. Brinde cá, diz Edu.
Os dois brindam, Paulo fala.
– Que a sexta-feira traga a algum cinema decente algum filme decente. Ou indecente. Mas que seja bom.
– Amém!

Elas ficam
Os nomes Paulo e Edu são retirados dos personagens de Todas as Mulheres do Mundo (1967), de Domingos de Oliveira. Ali, Paulo José interpreta Paulo, e Flávio Migliaccio é Edu.
Já Leila Diniz, a Maria Alice do filme, é só uma das musas no nosso cinema que deviam ter ficado mais um pouco por aqui – pensando como viúvo. Se atuassem pessimamente, pelo menos traziam uma aura boa pra a tela. Além dela, que partiu aos 27 anos, bom lembrar de Adriana Pietro (de O Casamento, 1976, de Arnaldo Jabor), que faleceu aos 25, e Cláudia Magno (de Menino do Rio, 1982, de Antonio Calmon), aos 35. O bom é que os filmes ficam.

Ah, é primavera no Mediterrâneo.
Quentin Tarantino, Lars Von Trier, Pedro Almodóvar, Ang Lee, Michael Haneke, Gaspar Noé, só pra falar do que mais gosto e conheço. E só um lugar pode juntar tanta gente boa e diferente num só evento: Cannes.
Todos eles estão com filmes (divulgados no último dia 23) na mostra competitiva do festival, ainda recheado de coisa boa fora dela – mesmo sem brasileiro, quem achar a lista ruim merece ficar um mês sem ver filme. De 13 a 24 de maio, Cannes me espera. E fica triste, já que eu não vou. Mas aceito propostas.