Trabalho de ressaca
Afonso e Fernando estão no final da pausa para o almoço, já de volta ao trabalho. Enquanto esperam pelo relógio, Afonso divaga sobre o seu namoro com Júlia, cujos créditos finais são acompanhados de uma melancólica trilha sonora em sua cabeça perturbada.
– Cara, fale a verdade. Eu tenho cara de otário?
– Não. Você tem cara de ressaca – crava Fernando.
– Tô falando sério, porra!
– Eu também. Na verdade, diria que sua cara é de vômito, mas fui delicado, já que você tá na fossa. A gente já dividiu apartamento, não me faça lembrar de suas manhãs de domingo, por favor.
– Assim você não ajuda em nada – lamenta Afonso.
– Quem não ajuda é você, que namorava a versão da atriz certa no filme errado. Júlia parece Penélope Cruz, ponto. O problema é que você pensava naquele doce tragicômico de Volver, sem nem desconfiar que ela estava mais para Jamón, Jamón.
– Não tem nada disso.
– A diferença é só que não teve Javier Bardem.
– Não, a diferença é que eu quis dar uma de Kubrick com ela.
– Ai, meu Deus, qual a blasfêmia da vez?
– Kubrick chegou a filmar mais de 100 vezes a mesma cena. Nosso namoro terminou 100 vezes antes de eu perceber.
– Mentira. Você percebia, porque ela falava, lentamente, em voz alta e em tom fonoaudiólogo – “acabou”.
– Não. Ela dizia assim – “não dá mais”.
– E literalmente nem dava mais. Você mesmo dizia que o sexo com ela não era grande coisa.
– O sexo da gente era como o Brasil. Com potencial para ser uma potência, mas sem potência para chegar nesse potencial.
– Você broxou, foi?
– Não, imbecil. Falo assim porque não era bom como poderia ser. Antes imaginava e pressentia, e depois comecei a perceber, que seria ótimo foder com ela. Digo, vamos falar foder mesmo, sem delongas. Mas o foder nunca foi tão bom nem com a freqüência que imaginava. E não necessariamente por culpa dela. Ou minha.
– Por culpa de Kubrick, na certa.
– Tem muito tempo que não vejo filme dele, que ficou enciumado e me castigou.
– Quem vai ficar enciumado é Alexandre, com essa sua indiscrição para flertar com Liliane.
– Sério? Tô como Al Pacino com Michelle Pfeifer em Scarface?
– Não. Comparado a você, Tony Montana é um lord.
– Ah, você tá de brincadeira, não tá?!
– Tô, mas você precisa tomar cuidado. Tá todo mundo junto aqui, trabalhando sério, o clima pode ficar chato.
– Ninguém mandou os dois escolherem a mesma profissão. E, convenhamos, ele é meio estúpido, além de quase feio. Ela é bacana demais pra ele.
– Gosto da palavra bacana. É simples e bonita sem ser ordinária. Igual a Liliane, que ainda é inteligente. Olhando outro lado positivo da coisa, rola mais afinidade entre vocês dois do que rolava entre você e Júlia.
– É verdade… mas não tô pensando em nenhuma das duas.
– Tá pensando em quê?
– Tô fazendo uma ligação entre o primeiro filme de Tarantino e minha relação com elas duas… e, acho, com a maioria das mulheres em geral – ou com as que me interessam, pelo menos.
– Que é que tem a ver Cães de Aluguel com elas?
– Não, não falo de Cães de Aluguel, falo do My Best Friend’s Birthday, de 1987.
– Não sabia desse dele. Mas o que é que tem nele, e o que é que ele tem a ver com Júlia e Liliane?
– É um média, que tinha pouco mais de uma hora, até um incêndio queimar o rolo final logo depois de pronto. Ficaram só pedaços, que obviamente não servem pra nada. Ou seja, o primeiro, e sempre inesquecível filho dele, simplesmente escafedeu-se. Como acontece com as mulheres e tudo de sua vida, mas como não deve ser com os filmes.
– É um jeito de se olhar – pondera Fernando.
– O outro é pensar em como ele está hoje.
– Você não tem como saber como Tarantino está.
– Sei como estão os filmes dele, é o que importa.
– Faz sentido.
Afonso olha o relógio.
– … já tá na hora de a gente voltar também. Qual a cena de agora?
– A do jantar entre Liliane e Alexandre – diz Fernando.
– Isso. Você já conferiu a luz?! Já, já… Vamos chamar o resto do pessoal para a gente recomeçar, beleza?!
– Tá ok…
Os dois saem. Oito minutos depois, recomeçam as filmagens. Que acabam no dia seguinte. A partir de quando Afonso volta a cultivar a mesma cara de ressaca.
E a ansiar por outro dia de trabalho.
Nice americana
As adaptações de hoje são de Julie (Jacqueline Bisset), Alphonse (Jean-Pierre Léaud) e Ferrand (François Truffaut)
– com fidelidade a Alexandre (Jean-Pierre Aumont) e Liliane (Dani). Eles estão na prova de amor que é Noite Americana (1973), do próprio Truffaut. Que amava as mulheres e o cinema – e que faz uma falta danada.
Espanha e EUA
É bom conseguir encaixar, no texto,
somente filmes que gosto. Desde os diferentes tipos de breguice de Jamón, Jamón (1992, de Bigas Luna) e Scarface (1983, de Brian de Palma) até Caes de Aluguel (1992, de Quentin Tarantino) e Volver (2006, de
Pedro Almodóvar) – os responsáveis pelos dois últimos, para mim, estão entre os maiores vivos. Que assim continue(m).