Artigo

Bons companheiros

Os dois já conversam há um bom tempo.

– Mas e por que vocês não deram certo?, questiona Isabelle
– A gente brigava muito. E ela perdia as estribeiras por qualquer coisa, relembra Theo.
– Ela parecia tão delicada…

– Quando tinha crises de ciúmes, ela tinha a delicadeza de uma escarrada – de sangue.
– Sério?

– Não. Sem sangue.

– É… Confortante…

– Pra você ter uma ideia da cena, o relacionamento da gente parecia o de De Niro e Sharon Stone em Cassino.

– Ela era uma prostituta?

– Não, Belle, na verdade quis só ajudar na visualização das brigas.

– Uma baixaria louca, só que sem o glamour e a breguice de Las Vegas, certo?!

– Mas com o calor de Itabuna e Ilhéus. E com a combinação mais perigosa que existe.

– Whisky com o pó de pirilimpimpim?

– Não: tédio, dinheiro e carência.

– O que dá no mesmo, Theo. Você não precisa se justificar pra mim. O problema era o braite, não era?

– Era, mas parei de vez, você sabe. Falando nisso, lembra da primeira vez que você cheirou?

– Aham. Primeira e única – até hoje. Começamos com trechos de Scarface, depois revimos Bons Companheiros e Trainspotting. Nossa, que coisa mais clichê…

– Ah, Belle, a primeira vez de tudo é um clichê, nem que seja pelo fato de ser uma primeira vez. O que você pode comemorar é o lado positivo da coisa. Foi com seu namorado, que você já conhecia bem até antes de namorar e, pra completar, você não só sobreviveu às carreiras como, o mais importante, não teve rebordosa. O que um bom pó e um bom namorado não fazem, hein?!

– Sexo.

– Ahn?

– Nada. Por falar em drogas, Hair, como tá?

– Tá bem. Até hoje tá guardado com o bilhetinho escrito por você. Ainda lembro daquela quase poesia, quer que eu diga?

– Não, se até você chama aquilo de quase poesia, melhor não.

– Belle, ninguém sabe falar de amor com 18 anos. A gente sabe, no máximo, querer saber.

– Isso é verdade. Mistura a insegurança e inconseqüência de um com a dependência do outro. Tudo culpa da idade – ou da falta dela.

– Você foi completamente rodrigueana agora.

Theo sabe que foi exatamente ele quem apresentou a Isabelle as melhores coisas de Nelson (sem piadas cretinas), mas acha desnecessário lembrá-la. Seu telefone ajuda e toca.

– Oi… tudo bem… parei pra tomar um suco aqui, tô indo pra o correio… eles foram lá em casa, mas não tinha ninguém, aí preciso passar lá hoje pra pegar o livro… tá bom, tá bom… quando chegar em casa te ligo… beijo…

– Quem era?, pergunta Isabelle.

– Jesus.

– Eu preferia você hétero.

– Você continua com um radar infalível… A gente tá ficando há pouco tempo, ela faz comunicação…

– Você nunca conseguiu namorar com ninguém de Direito, não é?!

– Não. Quando a mulher parecia perfeita, tinha namorado. Mas quando não tinha, uma com quem tive um caso de uns três meses, era obcecada por um ménage.

– Com dois homens ou duas mulheres?

– Dois homens: Kelsen e Miaille. Se um dos dois faltasse, Reale. Eu era só a quarta opção.
– Melhor do que nada, ela poderia ter Pontes de Miranda à sua frente.

– Mas aí, por tabela, ela teria também Igor à frente. E você enciumaria. E o que poderia ser uma orgia viraria uma guerra. Sou pacifista, antes meio corno do que quase assassinado.

– Se ela viesse pra cima de Igor…

– Acho que até Igor acharia um porre tanta conversa de Direito.

– Não sei não, tenho menos ciúme da ex-noiva dele do que de Pontes de Miranda.

– Ah, quieta com isso, Igor é um cara correto. Ele ainda tá na Igreja Batista?

– Não, ele se converteu ao ateísmo. Graças a Deus.

– Você tá de brincadeira…

– Nope…

O celular de Isabelle toca.

– Falando no santo…, comenta ela, que atende. Oi, amor… tô aqui no… ah!.. Ah… tá? Cadê?!
Ah, pronto… pronto…

Igor aponta na rua, Isabelle o percebe.

– Olha ele ali…

– É, ele falou que estava aqui em frente. Tenho que ir, Theo.

– Ok, Belle, vai lá. Dê notícias.

– Pode deixar… fica bem… Beijo.

– Beijo, Belle, se despede ele, que acena para Igor. Eles terminam o dia em casa – cada um na sua, digo. Isabelle ainda não tem certeza do que fará, Theo vai rever Bons Companheiros. Gostaria de saber o que Scorsese acha disso.

Nunca anacrônico
Theo e Isabelle roubaram seus nomes dos irmãos (interpretados pelos – ali nem tão – ótimos Louis Garrel e Eva Green) em Os Sonhadores, de Bernardo Bertolucci. Confesso não ser entusiasta xiita do filme, mas é inegável que, embora a ideia e o romantismo ingênuo às vezes não sejam tão bem executados, ele tem seus momentos – e cresceu muito quando revisitado.

Os outros
Hair (1979), de Milos Forman, é um daqueles filmes que faço de tudo para, além de assistir, não comentar. E isto é uma das poucas coisas que posso falar sem me constranger. Não vejo há três meses – é preocupante.

Martin Scorsese, por sua vez, é um dos que consegue a façanha de nem sempre me cativar de primeira, mas atingir em cheio quando revisto. Cassino é muito bom, e Bons Companheiros, bem, é uma aula de cinema, além de uma delícia de filme. Que todo publicitário tenta fazer. E muito cineasta (com ou sem aspas), também tenta imitar.