Artigo

O público e o privado no carnaval de Salvador… (Parte Final)

O público e o privado no carnaval de Salvador: em busca de uma ponderação dos Direitos Fundamentais (Parte Final)

A seu turno, na direção de um paradigma de maior democratização para a folia momesca, como contraponto ao modelo de mercantilização do carnaval, pode ser invocada a concretização pelo hermeneuta dos seguintes princípios constitucionais: o princípio do Estado Democrático de Direito (art. 1º, caput), à medida que a ampla participação dos segmentos sociais no carnaval de Salvador se revela como uma forma de expressão democrática da cultura popular; o princípio da dignidade da pessoa humana (art. 1º, III), que obstaculiza qualquer conduta pública ou privada que venha a violar a integridade física ou o psíquica do folião; a promoção do bem comum e a vedação da discriminação (art. 3º, IV), que não se coaduna com preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação no cenário carnavalesco; o princípio da igualdade (art. 5º, caput) que deve assegurado a todo participante do carnaval, visto que todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade; o princípio que enuncia o direito social ao lazer (art. 6º), porquanto o carnaval, como festa de vocação eminentemente popular, deve propiciar o entretenimento de uma amplo contingente de foliões; e o princípio da preservação da identidade cultural (art. 215), que implica a tutela das raízes populares, africanas e indígenas do carnaval de Salvador, visto que compete aos poderes públicos garantir a todos o pleno exercício dos direitos culturais e acesso às fontes da cultura nacional, incentivando a valorização e a difusão das manifestações culturais, bem como protegendo as manifestações das culturas populares, indígenas e afro-brasileiras, e das de outros grupos participantes do processo civilizatório nacional.

A sociedade civil soteropolitana, considerada como comunidade de intérpretes da Constituição (cidadãos, representantes de categorias econômicas, governantes, parlamentares, magistrados, promotores, advogados, acadêmicos, veículos de comunicação), deve valer-se da técnica da ponderação de bens e interesses para compatibilizar o modelo mercantilista de organização do carnaval de Salvador com um paradigma mais socialmente mais inclusivo da folia momesca, dissolvendo, assim, a suposta dicotomia que polariza o interesse público e o interesse privado. Embora não seja tarefa deveras simples, a normatização da ordem jurídica municipal e a formulação das políticas públicas correlatas devem buscar a pacificação entre os aludidos princípios constitucionais, harmonizando, de um lado, os princípios da valorização do trabalho humano, da busca do pleno emprego, da livre iniciativa, da existência digna, da justiça social, da propriedade privada, da função social da propriedade, da redução das desigualdades regionais e sociais, e, de outro lado, os princípios do Estado Democrático de Direito, a vedação da discriminação, da igualdade, o lazer e a preservação da identidade cultural.

Parece-nos ser imperiosa a elaboração e a discussão democrática de um Projeto de Lei Municipal, coerente com o recente Plano Diretor de Desenvolvimento Urbano da cidade, que resulte do diálogo entre diversos atores públicos e privados, tais como parlamentares, autoridades governamentais, cidadãos, acadêmicos, empresários, profissionais liberais, representantes da mídia, diretores de blocos carnavalescos, membros da Ordem dos Advogados, integrantes do Conselho Regional de Engenharia e Arquitetura, dentre outros segmentos representativos da sociedade soteropolitana.
Caberia a esse hipotético Projeto de Lei Municipal sintetizar a ponderação dos princípios constitucionais acima referidos, fixando parâmetros mais objetivos e consensuais nos seguintes campos: atribuição de competências dos órgãos estatais envolvidos na folia momesca; institucionalização de espaços compostos por representantes dos poderes públicos e da sociedade civil para a concepção e a fiscalização do evento; planejamento e modernização da logística necessária para a organização da festa; definição do modo de participação da iniciativa privada nos espaços publicitários da folia momesca; articulação entre os organismos estatais e as entidades particulares para a exploração racional do potencial turístico da festa; estabelecimento de uma ordem plural para os desfiles dos blocos carnavalescos, com a preservação de agremiações vinculadas às raízes africanas e indígenas; estruturação de mecanismos de apoio público e privado aos blocos carnavalescos tradicionais que não possuam apelo comercial; controle da exploração dos espaços públicos pelos camarotes privados; implemento de programas de qualificação da mão-de-obra e da prestação de serviços; proteção dos direitos dos trabalhadores temporários; e a descentralização do evento, com a criação de circuitos alternativos em bairros mais carentes.

Sendo assim, a aprovação desse hipotético Projeto de Lei Municipal, legitimado por um amplo debate entre as forças sociais da cidade, poderia simbolizar a reformulação da folia momesca dentro de marcos constitucionalmente adequados, estabelecendo diretrizes mais adequadas para a organização de um Carnaval potencialmente lucrativo e socialmente inclusivo.