Artigo

Desconstruindo a ordem pública e reconstruindo a prisão preventiva (Parte 1).

Quando se reflete sobre a “ordem pública” como hipótese de cabimento da prisão preventiva (CPP, art. 312), o estudioso do assunto defronta-se com um sério problema hermenêutico, dentre tantos outros. Tal problema refere-se à melhor conceituação que se pode atribuir a tal expressão.

E quando se reflete sobre o ato de conceituar é preciso lembrar que todo conceito é uma metáfora (Nietzsche), vez que é sempre a generalização de um evento singular e irreptível. Aliás, entre o evento e a linguagem há sempre uma generalização ao quadrado. Há sempre dois abismos gnosiológicos que se colocam entre o evento e o conceito. O primeiro se encontra entre o evento e o pensamento que este desperta no observador. E o segundo, reside entre o pensamento e o uso da linguagem. Linguagem que, como se sabe, se vale do uso de conceitos. E os conceitos, por sua vez, são metáforas da realidade que foi experimentada por meio do arsenal sensorial humano, a partir dos quais se constitui a memória. Ah, a memória, esse arquivo de metáforas, cárcere do aprendizado e depósito de culpas.

Diante disso, é possível concluir que não há uma identificação entre conceitos e eventos. Conceitos são como máscaras, ao mesmo tempo em que escondem a individualidade do ator, auxiliam na representação de um personagem. A individualidade do ator é a atuação do ser humano no teatro de sua existência. O personagem é um papel da peça da vida. Esta peça escrita por um único roteirista, a linguagem.

Uma criança levada que joga dados com os signos , que brinca com o silêncio, que se vale dos gestos e abusa da imagem. Eis o que é a razão moderna, um milagre derivado da fé humana na linguagem.

Diante disso, a primeira recomendação que é cabível quanto ao uso da expressão “ordem pública” é que seja entoado pela doutrina o réquiem à ingenuidade. Não convém discutir qual seria, em tese, a melhor definição de tal expressão, vez que todo significante tem o seu significado determinado pelo intérprete diante das peculiaridades de cada caso e segundo os valores determinantes. Em suma, se o significante é semântico e sintático, todo significado é pragmático. Logo, discutir se a expressão “ordem pública” deve ser entendida como clamor público ou como a prática de um crime de relevante gravidade, por exemplo, é uma discussão inútil.

Tal discussão só tem algum sentido para os adoradores da legalidade e os beatos da segurança jurídica. Mas é preciso advertilos: a credulidade é irmã da ingenuidade. Esclarecida a natureza metafórica peculiar a todo conceito, logo se percebe que conceito, “ordem pública”, pode ser desconstruído. Desconstruir não é destruir conceitos, mas reconstruí-los (Derrida) de acordo com a singularidade do caso e dos valores envolvidos. Afinal, todo conceito é uma caricatura da percepção. E a percepção, esse fenômeno que o processo penal nomina como prova, é sempre limitada.

Como limitada é a compreensão humana sobre a singularidade do evento, pois o todo é demais para o ser humano (Jacinto Coutinho). E o ser humano, em tempos de modernidade tardia (ou pós-modernidade), não é o super-herói racionalista de Descartes, mas o ser carente de Blumenberg. Assim falou Zaratrusta! Logo, o artigo 312 não é uma norma, mas um texto de lei (Sobota). E o texto de lei não se confunde com a norma, antes colabora de forma parcial com a sua produção.

A norma é o fruto da relação dialética entre texto de lei, caso e valor (Adeodato). Enquanto a lei é genérica, a norma é concreta. Enquanto a lei é declarada, a norma é construída. E, enquanto existir um seminarista doutrinado pela Escola de Exegese haverá o desejo de que o processo penal busque uma verdade (real, formal, processual, ou seja, lá qual for…) e de que o intérprete alcance o espírito da norma, como se o processo hermenêutico fosse uma “lipoaspiração epistemológica” (Streck). Pobres fiéis! (Continuação na próxima edição)