Artigo

Desconstruindo a ordem pública e reconstruindo a prisão preventiva (Parte final)

Ora, se a expressão “ordem pública” não é norma, e se a norma não é uma entidade fantasmagórica errante possuída por um espírito obssessor que precisa ser exorcizado pelo sacerdote intérprete, então, é possível reconstruí-la. Eis o ponto, é preciso reconstruir, em tempos de sociedade do espetáculo (Debord), o conceito de “ordem pública”, de sorte a adequá-lo à realidade social contemporânea (bem diferente daquela existente nos idos da década de 40, quando o Código de Processo Penal vigente foi gestado) e harmonizá-lo à natureza cautelar da prisão preventiva. Em suma, reconstruir a “ordem pública” é salvaguardar a tão combalida presunção de inocência. Sempre tão propalada, nunca antes pela média tão questionada!
Reconstruir a “ordem pública” implica compreendê-la com os olhos de Orwell (1984) e com a advertência de Foucault inspirada em Bentham. Se é o “clamor publicado” que importa “ordem pública”, então, é a partir da lógica do “reality show” que esta expressão precisa ser reconstruída pelo Processo Penal contemporâneo.

Isto porque na sociedade do espetáculo a eloqüência das imagens substituiu a sonolência das palavras. As relações sociais tornaram-se representações cênicas e os indivíduos foram substituídos por pessoas.

E, como se sabe, ser pessoa é atuar (Hobbes) segundo o enredo da cultura de massa estabelecido pelas modernas condições de produção (Debord). Em suma, quando o mundo real se tornou uma “república das imagens”, o Processo Penal se tornou um “game show” e a sentença uma mercadoria “fast food” (Baudrillard), os meios de comunicação de massa se transformaram em máquinas de alienação do indivíduo (Ramonet).

Ora, quando os meios de comunicação de massa foram alçados a tal condição, a média se tornou o “grande irmão”, que tudo vê e a todos vigia. E, neste instante, foi reconstruído o significado da expressão “ordem pública”. O clamor público que antes justificava a decretação a prisão preventiva, tonar-se, então, motivo de manutenção da liberdade do acusado durante o curso do processo.

Afinal, para que prender alguém que se encontra vigiado? Quando o inquérito policial se transformou em chamada de abertura do telejornal que vai ao “ar” em rede nacional, o modelo do panóptico foi reinventado, e o acusado de desconhecido se tornou celebridade. Para que prender alguém que já perdeu a liberdade?

Por conseguinte, quando as relações sociais se tornaram mais complexas, as instâncias informais de controle (a exemplo, a religião) se diluíram e o Direito experimentoua uma “sobrecarga ética” (Adeodato), o Processo Penal se viu obrigado a se adaptar a essa nova realidade. E, neste contexto, a expressão “ordem pública” tornou-se motivo de manutenção ou concessão da liberdade ao acusado (CPP, artigo 310, parágrafo único). Em outras palavras, a “ordem pública” transformou-se em hipótese de revogação da prisão preventiva, por ausência de qualquer cautelaridade (inexiste o periculum libertatis) e em respeito à preservação da presunção de inocência (princípio que determina a subsidiariedade do instituto da prisão provisória). Afinal, qual é a possibilidade de fuga para o acusado quando este tem o seu rosto mostrado, repetidas vezes, em todo o território nacional?

Qual é o perigo que a “liberdade” do acusado traz ao processo, se ele já se encontra vigiado pelas câmeras e encarcerado pelos holofotes?

Se a expressão “ordem pública” não é um disfarce hermenêutico (De Man) para transformar a prisão preventiva em medida de antecipação de pena, então, força é convir que assista razão à tese aqui sufragada. Quando o Processo Penal se tornou a novela diária do tele-expectador alienado, o acusado se tornou o Cristo a ser crucificado. E ao acusado resta rogar aos céus e repetir as palavras do Messias dos cristãos: “Pai, perdoa-lhes, porque não sabem o que fazem”!