Artigo

O Pior Prefeito da História

Antes de ser político Aderbal tomava duas ou três pingas na venda de Tertuliano, perto do almoço. Simpático e sedento, sem camisa, abuletava-se numa mesa e era feliz. Jamais sonhara ser o prefeito de Uraviba. A vida tem dessas coisas, pensava ele, quando queria se desculpar por tamanha incompetência ante o cargo.

Passados dois anos do seu governo, a cidade era unânime em afirmar, “O pior prefeito da história!”. Um título que Aderbal pouco entendia, pois gastou a juventude atrás de mulheres e nunca estudou administração pública, economia ou coisa que o valha.

Ainda restavam dois anos para cumprir e muito poderia ser feito. Porém, de que forma? Ele não sabia. No íntimo compreendia que a tragédia não era culpa exclusiva sua. Encontrara uma prefeitura corrompida, um bando de burgueses decadentes a lhe implorar cargos e favores. Aderbal não sabia dizer não e, sempre cedendo, acabou enquadrado por um sistema impossível de controlar. Passivo, deixou-se levar pelos amigos de um antigo chefe político, o coronel Luciano Hagge.

Coronel Luciano Hagge governou Uraviba por dezoito anos. Nesse tempo ficou poderoso. De tropeiro passou a milionário, dono de terras e hotéis de luxo. Todos o temiam e só o maldiziam às costas, timidamente. Havia boatos de crimes de mando, espancamentos, grilagem e outros gestos não gentis praticados por ele, sendo o maior deles o rombo aos cofres públicos.

O certo é que coronel Luciano acumulou mais de cento e cinqüenta processos, cíveis, criminais, eleitorais. Um homem de muitas varas, frequentador de praias de nudism e terreiros de Candomblé. Seu sonho em se tornar governador de estado, não obstante, jamais se realizou.

À noite, sozinho em sua cama, Aderbal planeja demintir os secretários – todos eles escolhidos iretamente pelo Coronel. Põe-se a imaginar chegando ao gabinete, austero, valente, decidido: “Estão todos na rua! De agora em diante quem manda sou eu! Chega de ser moleque de recados!”. Pouco antes de adormecer, o prefeito esboça um sorriso para público nenhum, na escuridão.

Dorme seco e sonha sendo vaiado por esquálidos negros. Pela manhã é acordado e há um telefone a falar de propinas, superfaturamentos e outros itens de uma pauta infernal. O prefeito se levanta e mesmo antes de escovar os dentes compreende o tamanho de sua covardia. Não mudará nada.

Como posso ser tão fraco? Reflete dioturnamente. Nos dois anos de poder sua grande obra foi mandar capinar a praça principal e colocar cascalho nas três vias centrais do município. Depois, gastou dois milhões em propaganda e trios elétricos para a inauguração. Todos fazem isso! Sussurra ele ao vento. Porque sua consciência dói e mal pode rezar como antes. De fato, Aderbal não é inapto sozinho. Uraviba é uma vilazinha de analfabetos vaidosos, netos de antigos garimpeiros que ganharam muito dinheiro e depois faliram na mesma velocidade. Restou, a tal elite, viver do erário público, revezando em cargos ou fazendo projetos para vender à prefeitura. E assim os anos passam.

Uraviba está entregue às moscas. As ruas sujas e rotas, o comércio mais parecendo uma feira de ratos. Seus habitantes, maltrpilhos, vagam para lá e para cá, vivendo de sexo, cachaça e tiroteios. Cidade sem livraria, sem cinema, sem teatro, sem universidade pública, sem nada que valha à pena. Tem muitos puteiros e putas, e automóveis adquiridos sabe-se lá como. E ainda faltam dois anos! Matuta Aderbal, coçando o queixo. Se pudesse pegava no sono e só acordava uma década depois. Não pode. Precisa conviver com a legião de corruptos, corromperse também, ouvir as orientações do Coronel, trocar o óleo com as secretárias e com as professoras municipais.

Os órgãos da gestão Aderbal bem poderiam ser chamados de “Secretaria do Desgoverno”, “Secretaria de Destruição de Obras”, “Secretaria do Atraso Urbano e do Mal Ambiente”, “Secretaria da Doença”, e assim por diante. Contudo, por mais que as coisas estejam fora de controle, sem a prueza dos tempos de Tertuliano, mesmo tendo vendido a alma, Aderbal, gosta de observar o esgoto onde no passado funcionou um rio cristalino.

Uma ideia obsessiva o domina. Acuado, tenta escutar alguma voz vinda de dentro. Inútil. O seu guardião interior está mudo. Uma capivara caminha serenamente, um bem-tevi, uma lua toda amarela começa a surgir nos céus. Mas há um martelo na cabeça de Aderbal, um gotejar sem fim: “O pior prefeito da história!”