Artigo

A Baba do Diabo

Historinha de Cyro de Mattos

Cabelos escorridos, finos, até os ombros. Barba até o peito para com os ares de profeta impressionar os incautos e esconder seus ressentimentos da vida. Baixote, por sorte não era anão. Seria pior. Aumentaria a carga das frustrações, já pesada dentro dele. Estatura pequena, cabeça grande, como isso doía. Tinha medo quando se via diante do espelho. Na vida existiam também situações críticas com outros. Por que não se conformava com a sua ? Ser preto ou pobre, qual a pior desgraça? Pobre: igual a cachorro. Preto: rejeição social à primeira vista. Muitos afirmavam que preto não era raça. O que seria dele se tivesse nascido preto? Forjaria uma saída: procuraria ser um advogado famoso. Brilharia na alta sociedade, admirado por muitos, casaria com uma loura, sua prole sairia amorenada. Ser mestiço era bem melhor para enfrentar o preconceito racial duma sociedade perversa. Os filhos assim não comeriam da sociedade, como o pai deles, escuro como carvão, o pão que o diabo amassou.

Por causa da pele branca, cor de vela, detestava o sol. Tinha medo de pegar câncer na pele, evitava ir à praia. Feio, feio, feio. Bem que poderia ter nascido para ser um homem de estatura alta. Bonito, rico. Azar, puro azar, lastimava. Para atenuar as carências achava-se culto, inteligente. Dominava até certo ponto o idioma, escrevia com desembaraço. Podia então abraçar a carreira de escritor. Seria um romancista renomado. Levava jeito para ler a alma humana mais o mundo através dos sinais visíveis da escrita. Como recurso necessário: boas doses de imaginação. E personagens vivas no enredo atraente.

Tempos depois: professor, casado, pai de dois filhos. Encontrou o editor certo para publicar seu primeiro romance. O editor havia inaugurado sua editora há pouco tempo. Queria ser também famoso. Desejava ardentemente ser uma marca importante nacional. Depois que leu os originais do romance “A Baba do Diabo”, o editor não teve dúvida. Ia publicar agora um desses autores geniais que ficam na história da humanidade para sempre.

Romance publicado, nada do previsto aconteceu. E o pior disso tudo estava ali mesmo diante dele. Na cidade já existia outro escritor, e consagrado. Havia ultrapassado os limites da fama estreita naquela cidade de porte médio. Autor de livros admiráveis. Volumes de contos, crônicas, poesia e infanto-juvenis. Detentor de prêmios expressivos, nacionais e internacionais. Publicado no exterior. Que porra! Como tirar o rival de seu caminho?

Não conseguia conviver com a presença daquele autor vitorioso. Sem possuir um currículo literário maior para.ofuscar o rival, de uma coisa tinha certeza: precisava tirá-lo de seus caminhos. Questão de vida ou morte.

Já não dormia. O rival tirava-lhe o sono. Era preciso fazer algo urgente para acabar com a agonia, crescendo dentro a cada instante, da ponta do pé aos cabelos da cabeça. A inveja latejava dentro dele um tumor grande. O rival publicava os livros em editoras que circulavam em circuito nacional. Eram vendidos. Esgotavam- se. Tinham edições sucessivas. Adquiridos por órgãos públicos da educação e cultura. O romance dele ficara nos limites da cidade interiorana. Permanecia como tinha saído do forno: no canto da prateleira de uma pequena papelaria. Os livros do rival eram estudados nos colégios e até em universidades brasileiras. O mal, que não tem limites para se expandir, cobrava dele uma atitude categórica, já estava passando do ponto. Seu sofrimento calcado no despeito podia implodi-lo no piscar do olho.

Manipulou alguns amigos que atuavam nos meios de comunicação locais. Formadores de opinião temidos e poderosos. Notas nas colunas sociais e matérias no noticiário atingiam objetivos declarados. Sangrar sem piedade os sentimentos puros do rival. Distorciam os fatos, caluniavam, pintavam o escritor renomado, ilustre filho da cidade, que não fazia mal a uma mosca, como um cara arrogante, egoísta, cheio de pose, metido a saber de tudo.

A estratégia posta em prática não surtiu o efeito desejado. A trama na mídia não desbancara a fama nem a postura ética do escritor famoso. A essa altura, a inveja e o despeito abraçados ao rancor alimentavam ao extremo a razão débil. Foi então que ele encontrou o rival, andando despreocupado na rua do comércio, em plena luz do dia. Sacou da arma, desfechando vários tiros, um na cabeça para que o rival não tivesse defesa. Na cadeia, no auge da crise nervosa, ele agora falava que cada romance que escrevesse ia abalar o mundo. Disso ninguém duvidasse.