Artigo

Um presépio triste

Na minha sala de audiências, as pessoas pobres representavam cerca de 90% das partes atendidas. Embora alguns defendam conceitos que pobreza não significa necessariamente privação de comida, posso assegurar que ali o volume de famélicos era considerável. Também ouço dizer que as pessoas oriundas dos bolsões da pobreza, são necessariamente violentas. Creio ser complexo fazer avaliação objetiva de violência urbana nesses termos, pois entendo que ela varia segundo diferentes situações. Aprendi na sociologia, ser violência tudo que fere ou esmaga a dignidade da pessoa humana utilizando a força para alcançar um objetivo, seja onde for.

O caso de hoje aconteceu em dezembro de 1979 e tem a ver com as divagações acima. Meu saudoso amigo Mário Cezar acredito que por ingênuo temperamento próprio mais das vezes misturava atendimento burocrático oficial com político eleitoral. Certa vez, pediu-me para ir até um bairro dos mais pobres da cidade, celebrar asamento de um homem preso ao leito por grave doença neurológica. Ele e a companheira (baiana, nascida em Alagoinhas) vieram do Rio de Janeiro.

Tiveram que abandonar o barraco que moravam para fugir da violência fora de controle, pois traficantes que ali dominam tudo em constantes confrontos entre eles ou com a polícia representavam uma ameaça constante.
O casebre tinha um único cômodo, onde o noivo estava deitado na cama. Naquele ambiente de extrema pobreza, fiquei assombrado com pequeno presépio armado num cantinho. As figuras eram de barro, trabalho artesanal realizado pelo filho do casal, nascido numa favela do Rio de Janeiro onde vivera seis dos seus oito anos de idade. Percebi que tinha formato de um morro: casinhas, pessoas segurando armas, animais, carros e motos.

Uma perfeição. No ponto mais alto, numa manjedoura de palha estava deitado o Menino Jesus, de cujo peito escorria um filete de sangue (usada uma fitinha de papel vermelho). Chamei o garoto e comecei perguntar sobre tudo aquilo. Na maior naturalidade, apontava para cada esculturazinha dizendo o que representava. Tinha carro roubado, viatura de polícia, motos de traficantes. Sobre o Menino Jesus, apenas disse: “aqui ta ferido de bala, acho que sem querer de ninguém”.

Para promover o espírito do Natal que já nos cobria a todos, aquela criança extrapolava tudo entranhado na sua almazinha de pessoa nascida e criada numa atmosfera de pobreza, violência e abandono existente na cidade grande. Para seu imaginário infantil, não existia diferença entre o bem e o mal. Tudo seria normal. E já na escadinha talhada como acesso à subida da “sua favela” estava um grande papai-noel levando às costas um saco cheio de armas.
Jamais poderei esquecer o que vi.