Apologia da casca grossa

Colecionador de títulos de doutor, para despeito (segundo ele próprio acredita e propala) do rival Fernando Henrique Cardoso, o ex-presidente Lula defendeu, em parte, ministros demitidos. Não deviam cair com facilidade; denúncia de corrupção exigem “casco duro” dos acusados. O que vem a ser casco duro, se não blindagem – arte que ele praticou quando governante?

Lula prega a reação por via da insensibilidade. Faz apologia da “casca grossa”, expressão um tanto em desuso, mas que designava, até época recente, o individuo grosseiro, para não dizer boçal, alienado, indiferente, talvez cruel.

A casca grossa reveste muitos segmentos sociais. De tão explicita e rotineira, a violência provoca a blindagem de sentimentos. Agredida, a todo instante, pela violência, nossa capacidade de misericórdia se dilui. A sensibilidade embotada cria uma camada de resistência que se resume a palavras formais, de boca para fora, sem teor cabal de solidariedade.

A realidade brutal suplanta a fantasia, e não apenas no exercício do poder. Mas, mesmo grossa ou dura, a sensibilidade filtra às vezes alguma piedade. É difícil, impossível apresentar indiferença diante de certos quadros de dor, certos “malfeitos”. A dor é alheia, e, no entanto nos trespassa. Vamos a dois exemplos ao acaso. O obsoleto e desconjuntado bonde de Santa Teresa, no Rio de Janeiro, saiu dos trilhos, virou e matou passageiros.

As autoridades negligentes correram à oficina de blindagem. Entre as vitimas, uma mulher jovem suplicava socorro: “Meus filhos, meu marido!”. Por muito tempo não a esqueceremos. Uma emissora de TV exibiu imagens do tribunal plenos dos traficantes nas favelas cariocas – sinal de que as unidades de policia pacificadoras precisam multiplicar-se. Com revólveres e metralhadoras expostos, os carrascos arrastam e espancam mulheres “traidoras” do tráfico, Mais adiante, outras tinham uma mão perfurada a tiro. “Minha mão vai cair”, soluçava a mulher toda ensanguentada. Obliterar tais imagens, para quem ainda não blindou a consciência, é um grande suplício.