Artigo

A sensibilidade de um poeta

Ao amigo de sempre, Miguel Florindo

O meu encontro com o sobrenatural mundo das palavras se dá das formas mais inacreditáveis (isso quando se dão tais encontros!). Estranho mesmo só o meu medo, só a minha inocente prece.

Ondas de silêncio me devoram por dias, semanas, e deixo de sentir o que antes permanecia em mim dialeticamente constante entre a razão & a emoção.

Todos dizem que o poeta é um ser especial. O gozo do versejador não é um gozo comum. Não! É um gozo especial: sobrecarregado. O poeta tem os olhos especiais. Vê o que comumente não se enxerga. Vê o gasto como se fosse novo. De tanto que os outros vêem, não vêem mais. Só ele enxerga. Só o poeta ouve. Coisas que ninguém mais ausculta, ele percebe longe… O poeta sente, ama, vive e morre de hora em hora! O poeta é um extraterrestre. Por isso não me sinto poeta.

Na verdade, tenho perdido a força magnética do olhar de leopardo. O ouvido entupido para as vozes do além, para os laivos da paixão poética. Não me sinto assim, como nunca me senti, pois estou me perdendo nos aços corroídos da verdade absurda, onde os adultos se trancam, se emudecem, se cegam… A sensibilidade – marca ferroada da emoção maior de todo bom escritor – se esvai a cada dia que passa como doída imagem que passa e deixa um sulco profundo de fumaça obscura. Ah! O que estará acontecendo com a sensibilidade que outrora me movia? Arrastava-me com a força encômia dos elos dos quatro elementos?

Foram-se as almas. Deixaram-me os sugadores de sangue. Abandonaram-me os monstros tentadores da poesia. Excluíram- me dos momentos sórdidos e nem mesmo ao acaso eles vêm…

Meu último demônio se deu numa certa manhã de ônibus lotado. Desses que a gente se inquieta quando vê uma senhora, uma criança, um senhor idoso, apertados entre braços e pernas multicores e egoístas.

Dei o meu lugar a uma senhora, coitada, que segurava pela mão uma criança triste. Fiquei em pé. O ônibus prosseguia. Ao passar do tempo foi esvaziando, esvaziando, até que me vi único em pé. Todas as cadeiras da frente ocupadas. Olho para trás, e o que vejo? Uma poltrona vazia, lúgubre, olhando-me, desejando- me. Sentei-me nela macia e deliciosamente. De repente, um estalo (o infeliz demônio!): a necessidade fortuita de olhar para trás, como na referida cadeira! Meu Deus! Feito cientista descobrindo a fórmula mágica com o seu “Eureka!”, conclui entre um riso amarelado que nada seremos sem a necessidade de olharmos para trás! Resgatarmos a nossa história, para podermos viver outras tantas… Não repetir os mesmos erros. Não esquecer das lições tidas e se preparar a todo instante para o porvir.

O ônibus continuava seu caminho. Desci no lugar pretendido: a porta de uma universidade. E em minha pandemônica miséria existencial, num rasgo de felicidade, continuei meus passos abafados, tendo a certeza de que até nos momentos de guerra interior, achando-se seco, duro e engessado, sem fantasias & cheiros, entranhas & sorrisos, podemos receber mensagens dignas dos mais verticais exegéticos conhecedores da alma humana.

Oxalá, voltem todas as sobrenaturais forças da natureza a me assediarem novamente… Enquanto não chegam, fico sem a destreza do poeta, sem a mágica do amor insano, sem a inspiração do divino – fluxo e refluxo das consciências libertas em vôo suave e pleno; fico com a fraqueza mental, com a razão dos surdos, com a teimosia dos incuráveis.