Artigo

PERSONA NON GRATA

“A brisa que acariciava o semblante de Camila transformou-se em lufada quando a gravidade puxou-a para baixo.”

Camila estava em prantos. Quase não conseguiu falar. Respirou com dificuldades, chamou Julianne de “mentirosa, imoral e falsa.” No pescoço, a marca da violência. Lúcio repreendeu Julianne. Disse, entre outras coisas, que situações como aquela não deviam ser resolvidas na rua e, ainda mais, por meio de agressões de qualquer natureza. Luiz ficou do lado de Julianne. Sílvia trouxe um copo com água. Camila insistiu na sua inocência, jurava que Julianne estava enganada. Ricardo não acreditou. Para ele, aquele discurso infantil não passava de um jogo. Camila se infiltrou no grupo desde o começo. Aquela história de criar um departamento que estimulasse a paz era pura hipocrisia. A voz doce, o olhar angelical, o diálogo fácil conseguiram convencer o presidente do Centro Cívico e, por conseguinte, todos nós. Camila foi convencida pela tia a entrar na equipe e passar tudo o que descobrisse sobre os próximos passos do CCCA, e depois do movimento que surgiu.

A desconfiança de que alguém passava informações desde a campanha do Pró-Grêmio livre partiu de Ricardo. Camila não faltava a uma reunião. Tinha acesso ao pessoal da comissão e à equipe do CCCA. Lúcio acompanhou a amiga até sua casa. No caminho, ela se arrependeu. Chorou quando contou em detalhes o que a vice-diretora lhe pedira. Lúcio ouviu quieto. Não podia fazer nada para defendê-la e, sem qualquer outra opção, sugeriu à amiga que se afastasse definitivamente do grupo. Ela baixou a cabeça, pediu perdão. As lágrimas continuavam caindo. Era tarde.

Pouco mais de dez horas da noite ela se equilibrou na travessa inferior da janela do apartamento do seu quarto. Não existia grade de proteção, só a balaustrada. Do quinto andar do Edifício Morada do Sol ela pôde ver um caminhão de lixo saindo da garagem do prédio. A brisa gelada, que soprava em seu rosto, vinha do mar distante, na Avenida. A lua cheia reluzia na maré alta, criando reflexos prateados. Camila entrou em desespero. A sensação de perda, de rejeição, de persona non grata entre aqueles que a amaram, tomara conta de seus pensamentos dia e noite. Parou de comer, de beber. Não saiu do quarto durante o dia seguinte, nem no dia posterior. O peito queimando, o constrangimento, a perda.

Camila Maria fechou os olhos. O coração desembestado, as pernas sacudindo, as mãos formigando e o desejo incontrolável de por um fim àquela angústia.

Traíra! Traíra! Traíra!

A voz aguda de Julianne penetrou no seu cérebro como uma agulha que foi empurrada, pouco a pouco, alongando seu sofrimento. Ela quis acabar com tudo. Ligou para a tia naquela noite dizendo que não faria mais parte daquele acordo. Esperneou, brigou, defendeu o grupo, acusou uma orientadora de incitar a greve e uma professora de trair o movimento.

Se não continuar, vai pro colégio interno!, ameaçou a tia. Entre o Convento e os amigos, Camila escolheu obedecer à tia. O medo de ir para o colégio interno, ficar isolada de tudo e de todos superou qualquer chance de levar adiante o papel de delatora. Agora, pagava o preço do isolamento pelas pessoas que mais a apoiaram.

Uma coruja branca sobrevoou o edifício emitindo um som idêntico ao de um tecido sendo rasgado; a sirene do apartamento tocou; a TV saiu do ar. No asfalto, o caminhão do lixo freou bruscamente em cima de um ciclista. A brisa que acariciava o semblante de Camila transformou- -se em lufada quando a gravidade puxou- -a para baixo.

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(Parte integrante do livro O Santo de Mármore que será lançado no dia 15 de novembro, às 18 horas, na Academia de Letras de Ilhéus).