Artigo

Almas do outro mundo

Recanto, pequenina cidade interiorana, amanheceu em polvorosa.

Seus moradores, pessoas simples, comentavam aquele acontecimento que a todos deixava temerosos e invocavam a proteção do Pai Eterno para que dele o livrassem. Era a terceira vez, naquele semestre, quando em noite de lua, principalmente de lua cheia, sobretudo se tal ocorria numa sexta-feira, que a plantação de melancia de Zé Pereira era perversamente destruída. Não fi cava um só fruto. Fazia pena. Comiam uma parte a outra pisava ou era deixada à toa. Era um estrago só.

Zé Pereira era um homem acaboclado. Sismado feito o capeta. Desconfi ava até de sua própria sombra. Mas apesar dessas qualidades, digamos assim, era um sujeito respeitado na comunidade por ser destemido. A tudo e a todos enfrentava, até da onça parida tirava o leite, comentava-se. Mas, tinha um defeito do qual não conseguia se livrar e que lhe causava inúmeros problemas, pavio curto. Explodia com facilidade e aí virava o bicho. Saísse debaixo quem por perto estivesse.

Para se ter uma ideia da personalidade forte de Zé Pereira, basta dizer que tinha por hábito carregar três sacos de cacau de uma só vez, um na cabeça e os outros dois debaixo dos braços. Sacos pesados, não sei bem de quantos quilos, mas o sufi ciente para que andasse curvado. Era uma exibição pública do seu vigor físico.

A molecada ao vê-lo passar, praticamente se arrastando, não perdia a oportunidade de se divertir. Ora dizia – coitadinho!

Era o suficiente à transmutação. Virada o diabo. Falava palavrões, amaldiçoava. Por vezes livrava-se do fardo e saia a correr atrás da molecada que se divertia aos risos. Não conseguia ir muito longe por conta do cansaço e por receio de alguém se apropriar da carga que levava. Diversamente ocorria quando, ao vê-lo naquela mesma situação, gritava em coro – Olha o jegue, olha o jegue! Era a única situação em que ele esboçava um sorriso e continuava sua caminhada em direção ao mercado onde o cacau seria vendido. No íntimo, assim agindo, estava a medir forças com o animal, acreditando ser mais forte que o jumento. Na pacata Recanto não havia luz elétrica. À noite, a iluminação nas principais vias, duas ou três, era feita através do gerador da prefeitura, desde que houvesse óleo. Funcionava das 18h às 22h. Não mais. Os moradores já sabiam disso. Havia, entretanto, alguns candeeiros afi – xados em alguns postes que clareavam timidamente o breu da madrugada. Brilho mesmo, só quando era noite de lua cheia. A plantação de melancia de Zé Pereira fica próxima ao cemitério e o fato de a mesma de ter sido destruída, por várias vezes, em noite de lua, aguçou a imaginação fértil daquela gente. Só poderia ser coisa de alma do outro mundo, pois qual o vivente em Recanto que ousaria o enfrentar?

Espalhou-se, então, o comentário de que os defuntos estavam a sair das covas para destruir a plantação de melancia de Zé Pereira, sabe-se lá o porquê?

Indignado, Zé Pereira resolveu contra- atacar.

Procurou o seu amigo Manduca, dono de uma barbearia. Enquanto cortava o cabelo e fazia a barba, narrou-lhe o seu plano. Confidenciou-lhe que na próxima sexta-feira, por ser noite de lua, iria armado de uma garruncha se esconder no pé de ingazeira localizado em frente ao cemitério. Do alto poderia observar quem lhe fazia aquelas perversidades todas. Então, abriria fogo, fosse em quem fosse. O amigo bem que tentou demovê-lo da ideia, em vão. Estava decido.

Não imaginava ele que Manduca era o autor daquela trapalhada toda.

Malandramente, Manduca e outros companheiros, cerca de dez, resolveram pregar uma peça no valente Zé Pereira. Deliberam, então, em usar, cada um, uma túnica branca e segurar numa das mãos uma vela; na outra balançariam um chocalho e todos cantariam uma melodia já ensaiada para a ocasião.

Na sexta-feira, lá estava o Zé Pereira, na espreita. De repente, por volta da meia-noite, saem todos em fila, vestidos de branco empunhando as velas acesas e cantarolando, repetidamente, assim: “quando nós éramos vivos esse caminho era nosso, hoje que somos mortos, chocalhamos os nossos ossos”.

E assim caminhavam em direção ao pé da ingazeira. Zé Pereira tremia, tremia tanto que a garruncha lhe caiu das mãos. Suava frio e o mijo escorria-lhe pelas pernas encharcando a calça de linho que trajava.

Já bem próximos da ingazeira, Manduca ordenou: “Alma da dianteira, sobe na ingazeira e derruba de lá o Zé Pereira”.

Não precisou a alma subir. O valente Zé Pereira caiu, levantou-se e esbaforido saiu correndo sem saber para onde. Só em casa percebeu que havia fraturado uma das pernas e quebrado duas costelas.

Depois disso, mesmo em noite de lua cheia, nada mais aconteceu. Entretanto, até hoje, lá para as bandas de Recanto, ainda falam desse fato envolvendo as almas do outro mundo.