Artigo

Não queria ser mais um

Ela descomplicava a Geometria. A professora de Desenho Geométrico era do tipo que levava os alunos a sair na porta da sala quando passava pelos cor- redores. Loira, linda e inteligente. Ela era a contradição de tudo que um dia possam ter criado sobre a coloração dos cabelos femininos. Se ela caiu ou não de pára-quedas na greve, ela foi a fi gura que manteve a calma quando o conflito ocorreu. Chorou copiosamente quando soube que tinha sido demitida. Foi uma das que encabeçou a paralisação de agosto dos professores por melhores salários. Seu discurso tinha como ponto de partida o diálogo. Decerto, colocava sempre em evidência conceitos imutáveis da Geometria, como o fato de que o caminho mais curto entre dois pontos nem sempre podia ser uma linha reta. É provável que se tratas- se de uma questão rudimentar só pelo fato de provocar outros questionamentos.

Entretanto, ela nunca conseguiu provar que o princípio geométrico estivesse errado. Na sala de aula não gostava de ver seus alunos estáticos. Cada assunto gerava uma série de exercícios que só terminavam quando a turma compreendia a questão. Entre polígonos, hipotenusas, ângulos e cálculos, a professora de Desenho Geométrico, sacudia seus longos cabelos ondulados, causando suspiros nos mais afoitos. Os óculos que mais lembravam uma professora de inglês de um daqueles filmes de sessão da tarde americano acrescentavam um charme todo especial. Apesar de brincalhona com os colegas, na sala de aula era uma mulher séria e respeitada que estimulou paixões entre os alunos do Curso Científico. Nu- tria uma amizade especial pelo professor de Geografia. As meninas do Curso de Magistério juravam que eles tinham um caso.

Conhecia o Desenho Geométrico como a palma da mão. Enquanto se preocupava em explicar a razão dos ângulos de um quadrilátero, alguns alunos discutiam com mais profundidade a simetria dos seus quadris, a sinuosidade de suas coxas, o perfume de seus cabe- los. Mas, qual era o aluno que deixaria escapar sua admiração? Ela era do tipo que primeiro a geometria, segundo a geometria e em terceiro lugar, a geometria. Ela não se preocupava apenas com questões de forma, tamanho e posição relativa de fi guras, mas também com as propriedades dos espaços. Ai do aluno que confundisse liberdade com libertinagem, pois, teria que resolver a quadratura do círculo ou a duplicação do cubo – dois problemas clássicos de sua disciplina – que não fi – cavam isentos na prova de recuperação. Ela não queria ser mais uma professora de Desenho Geométrico.

Queria ser a geômetra. Afinal, “todas as coisas têm solução trivial por meio da álgebra,” dizia ela. E este sentimento era externado a cada início de semestre. – Não pense vocês que estou aqui porque sou gostosa. Estou aqui por que sou um teorema vivo. Eu lutei por isso. Não queira ser mais um na multidão. Queira ser você, queira ser único, queira ser especial. E todos nós podemos ser. Coloque isso na cabeça de vocês. (Trecho do livro “O Santo de Mármore”, a ser publicado em breve).