Artigo

Cidade, memória e território

Os historiadores contemporâneos, em sua grande maioria, admitem que o conhecimento histórico renova- se à medida que se renovam os questionamentos sobre as fontes. Por isso, um dos grandes desafios dos historiadores atuais é “quebrar” paradigmas e consequentemente inter- relacionar, por exemplo, a história nacional e global com a história regional e local. A pesar das novas abordagens, no entanto, prevalecem os estudos elitizados, onde ainda se conta a história dos “vencedores”. No entendimento de Jacques Le Goff (1924/2014), historiador francês, o documento histórico reflete “o esforço das sociedades históricas para impor ao futuro, voluntária ou involuntariamente, determinada imagem de si próprias”.

Nesse aspecto, a história local pode contribuir para que a comunidade se (re)conheça e (re)valorize sua própria história, bem como seu território, a partir dessa renovada (re) interpretação documental. Para que isso aconteça, contudo, é necessário haver transformações. A sociedade precisa cobrar e investir mais na produção de projetos, pesquisas, textos, e etc., sobre a história regional e local. A relevância de novos pontos de vista tende oferecer à comunidade, outros elementos que possibilitam ampliar os conceitos e as reflexões sobre as memórias constituídas a respeito dessa história local. Le Goff, mais uma vez, nos lembra que a memória coletiva, nesse sentido, desempenha grande importância, considerando-se o processo de desenvolvimento das sociedades. E ainda, nessa mesma linha de raciocínio, Maurice Halbwachs (1877/1945), sociólogo francês, afiançou que a memória é construída por grupos sociais e são esses grupos que determinam o que vai ou não ser lembrado. A memória, portanto, é a reconstrução de fragmentos do passado da história. Deste modo, há um jogo de manipulação, de interesse da elite dominante, que decide o que vai ser escrito, consolidado, ensinado e o que não vai. Consagra-se, portanto, uma “história vista de cima para baixo”, conforme salientou o historiador inglês, Peter Burke. Assim sendo, a memória enquanto fenômeno social pode “adaptar” o passado e manipular o presente. Essa seletividade do passado pode se destinar a “construir” memórias e experiências que deslocam as atenções para as elites. Por isso, entender a história da cidade através de uma análise crítica, requer ainda entender as transformações sociais, que devem ser estudadas com maior profundidade. A história não deve se negar ao diálogo com outras ciências humanas como, por exemplo, a antropologia, a psicologia, a geografia, a economia e a sociologia, todas elas fundamentais no processo de (re) construção das novas abordagens historiográficas.

É preciso enxergar além do óbvio, para repensar os múltiplos significados históricos possíveis de serem estudados e partilhados no sentido da apreensão da história local e sua territorialidade. Nesse aspecto, esse estudo deve transitar entre a micro-história e a macrohistória, afastando-se da relativização dos acontecimentos, bem como das idealizações dos grupos dominantes. No contexto da historiografia da região cacaueira, e, embalados pelas glórias associadas aos “desbravadores”, dessa mesma região, os novos ricos do cacau, pretenderam moldar um conjunto de valores sociais, políticos e ideológicos que os colocavam como “herdeiros” dos precursores, bem como os ligavam à ideia de “progresso”, consagrando-os também como “líderes natos” da lavoura cacaueira do sul da Bahia. O culto à memória do “desbravador” como homem “singular”, “incomum”, “extraordinário” e “ilustre” ganhou força e permanência. Antonio Gramsci (1891/1937), filósofo marxista e político italiano, salientou que “a história recontada é adaptada aos interesses e necessidades do grupo que se encontra no poder, ou que tenta alcançá-lo”. O fato é que a historiografia da região cacaueira pautou- se, quase que exclusivamente, na relevância e reverência aos “desbravadores”, aos coroneis e aos seus descendentes (consanguíneos e/ou político).

Apesar disso, mais recentemente, outras abordagens históricas sobre essa região têm procurado enfocar personagens esquecidos pelas narrativas tradicionais. Isso nos permite repensar a história linear, que super dimensiona “os grandes vultos”, e, ao mesmo tempo, desconsidera outros agentes históricos, a exemplo dos indígenas, negros, mulheres, pequenos comerciantes, políticos oposicionistas, mini produtores, e os chamados “peões do cacau”. Enfim, a cidade, a memória e o território do que se designa “região cacaueira” do sul da Bahia, requer novos enfoques e outros estudos que ampliem o contato com o regional e o local, conectando-os ao nacional e ao global, sem rótulos e/ou adjetivações. História é história.