Artigo

Zumbi dos Palmares, escravista

Zumbi dos Palmares, último líder do maior dos quilombos no Brasil colonial, foi morto em 20 de novembro de 1695, quase dois anos depois de as tropas do bandeirante paulista Domingos Jorge Velho, ter destruído o quilombo. Zumbi se tornou um herói. Figura quase mítica. Exaltado como aquele que, em grande parte, melhor representou a luta contra a escravidão. No entanto, os documentos a respeito de Zumbi são poucos e o que se sabe dele, enquanto personagem histórico, também não é muito, ainda que a pesquisa sobre a vida dele e sobre a escravidão no Brasil colonial tenha ganhado fortes e novos impulsos. Até recentemente, por exemplo, o nome de Zumbi aparecia em pouquíssimos documentos da época, incluindose aí uma carta do governador de Pernambuco proclamando que ele, Zumbi, havia sido morto. Como é comum entre os “heróis”, a figura de Zumbi que conhecemos foi e é idealizada (assim como nos casos de Tiradentes e D. Pedro I).

Sob a influência do pensamento marxista, especialmente nos anos 60 e 70 do século XX, Palmares foi retratada como uma sociedade igualitária. Contudo, nos últimos anos, outras pesquisas, têm demonstrado que essa história idealizada de Zumbi e também dos Palmares, em grande parte ainda presente nos livros didáticos, não corresponde à realidade daquele século XVII. As novas pesquisas apontam que algumas das histórias contadas sobre Zumbi é inconciliável com as conjunturas históricas daquela época. Esses novos estudos não têm por finalidade desqualificar o simbolismo de Zumbi, porém, buscam apresentar um quadro mais realista do homem e de seu tempo. As novas pesquisas sobre Palmares (Alagoas) sinalizam que o quilombo não era um recanto da liberdade, bem como, Zumbi, não lutava veementemente contra o sistema de escravidão e mais ainda: Palmares não vivia isolado daquela sociedade colonial.

Muitos líderes africanos do século XVII foram guerreiros. Zumbi também foi um guerreiro. Isso, no entanto, não implica dizer que eles, inclusive Zumbi, não tivessem escravos para uso próprio. O historiador Ronaldo Vainfas, professor da Universidade Federal Fluminense e autor do “Dicionário do Brasil Colonial”, afirmou: “É uma mistificação dizer que havia igualdade em Palmares. Zumbi e os grandes generais do quilombo lutavam contra a escravidão de si próprios, mas, também, possuíam escravos”. Na mesma linha de pensamento o consagrado historiador José Murilo de Carvalho, no seu livro “Cidadania no Brasil”, assegurou: “Os quilombos mantinham relações com a sociedade que os cercavam, e esta sociedade era escravista. No próprio quilombo dos Palmares havia escravos. Não existiam linhas geográficas separando a escravidão da liberdade”. Flávio dos Santos Gomes, quem sabe o principal historiador a reinterpretar o que ocorreu nos quilombos, no seu livro “Histórias de Quilombolas”, afiançou: “Ao contrário de muitos estudos dos anos 1960 e 1970, as investigações mais recentes procuraram se aproximar do diálogo com a literatura internacional sobre o tema, ressaltando reflexões sobre cultura, família e protesto escravo no Caribe e no sul dos Estados Unidos”. No dia 20 de novembro, o Movimento Negro reverencia o dia da morte de Zumbi dos Palmares. Esta data é considerada, pela consciência negra, mais importante que o dia 13 de maio, quando a Princesa Isabel assinou a Lei Áurea e aboliu a escravatura. Os líderes do movimento alegam que a data da abolição é uma “data branca que reflete benevolência”. Mas, segundo o jornalista e escritor Roberto Pompeu de Toledo, “trocou-se um mito pelo outro; o da senhora bondosa, que gentilmente concede a liberdade aos súditos negros, pelo do negro rebelde e audaz, herói do inconformismo. Entre ambos, fica a realidade dura, cotidiana, suarenta, diversa, complexa – e, fora do círculo dos especialistas, ignorada”. Não faz mesmo muito sentido pensar em igualdade e liberdade numa sociedade do século XVII porque, naquela época, esses conceitos não estavam consolidados entre os europeus. Nas culturas africanas então, eram impensáveis.

João José Reis, um dos mais importantes historiadores do Brasil, considerado uma referência mundial para o estudo da história e da escravidão no século XIX, asseverou: “Escravos não foram vítimas passivas… Essa história não precisa ter o tom da vitimização somente. Acho melhor as crianças e adolescentes aprenderem que os escravos não foram vítimas passivas de suas circunstâncias, que resistiram como puderam a virar mera máquina de trabalho, que resistiram a isso de diversas formas, nem sempre através de atos heróicos, da rebeldia aberta, mas, através de formas mais sutis de resistência, fazendo corpo mole, fingindo-se doentes, manipulando psicologicamente seus senhores, fugindo para uma festa, batendo atabaques, cultuando seus deuses, aprendendo a ler e escrever a língua do Corão.”

E afinal, concluiu, João José Reis: “É importante que os rebeldes explícitos como Zumbi, os malês, Manuel Congo e outros sejam lembrados, festejados e estudados, mas não devemos esquecer os heróis do dia a dia, anônimos, que foram a maioria dos escravizados”.

Viva a História!