Entrevista

Entrevista com a professora de libras Alessandra Palmeira Ramos Oliveira, que além de promover atividades esportivas para as pessoas com deficiência, organiza encontros de surdos em Itabuna – Bahia.

DIREITOS – Qual é a sua formação acadêmica?

Alessandra Palmeira – Sou formada em Licenciatura Plena em Educação Física pela Faculdade Montenegro. Hoje também sou Pedagoga e com pós-Graduação em: Educação Especial; Educação Qualidade de Vida e Saúde e em Língua Brasileira de Sinais. Sou professora da rede pública estadual e municipal em que atuo como professora de Educação Física; e na Instituição de Ensino Superior UNIME – Itabuna onde além de lecionar no Curso de Educação Física em diversas disciplinas, atuo também como professora nos cursos de Pedagogia, Serviço Social, Enfermagem, Psicologia e Fisioterapia com a disciplina Libras, isso a depender da matriz curricular disponível em cada semestre. Possuo um capítulo no livro Diversidade na Escola, falando sobre Ptose Palpebral no Cadernos de Aula publicado pela editora Editus; e um capítulo no livro Educação e Inclusão, sobre Necessidades de Garantia e Direitos e Permanência da Pessoa surda na Escola publicado pela editora Ixtian; desenvolvo projetos de inclusão de pessoas com deficiência e apoio a AGP com esportes adaptados.   

DIREITOS – O que é Libras e qual a importância desta Língua para você?

Alessandra Palmeira – Como você bem colocou é uma língua. Não é uma Linguagem ou mímica ou simples gestos que as pessoas surdas utilizam para se comunicar. A Língua de Sinais Brasileira (como é apresentada internacionalmente) é uma Língua com estrutura gramatical própria que difere basicamente das demais Línguas, pela sua modalidade pois é percebida pelo campo visual e não auditivo como é a Língua portuguesa e os demais idiomas conhecidos. A sua importância deve-se estender a importância que damos às pessoas que utilizam desta Língua para se comunicar. Permita-me, como professora que sou, ilustrar nesta entrevista com situações marcantes que tenho aprendido na convivência com estas pessoas. Fomos convidados a um encontro de Surdos e Interpretes de Libras onde havia um casal de palestrantes que vieram de Salvador – BA: o Pr. Nilton (surdo) e sua esposa Letícia (intérprete), no início de sua preleção ele pergunta “Quem está aqui porque ama LIBRAS levante a mão?” Todos nós na plateia com um grande sorriso e satisfação levantamos as mãos. Aí ele nos frustra respondendo “Vocês estão errados!” Nosso semblante se abateu… Ficamos com os olhares fixos em suas mãos que nos falavam: “Primeiro vocês precisam amar as Pessoas Surdas para depois amar a sua Língua!” Esta fala reforça também o construto Cultural da Surdez pois faz-nos enxergar que precisamos aprender a Língua de Sinais porque devemos ter mais que uma responsabilidade profissional, um olhar incondicional sobre a pessoa surda e consequentemente sobre suas necessidades.

DIREITOS – A pessoa que aprende Libras aprende uma Língua universalmente utilizada?

Alessandra Palmeira – Não. Porque Libras é a sigla da Língua Brasileira de Sinais falada pelos surdos urbanos brasileiros. Cada País possui a sua. E por se tratar de uma Língua as diferenças regionais também a legitima, assim como na Língua Portuguesa os regionalismos estão presentes e enriquecem seu repertório e depende do contexto utilizado, assim como a Língua Portuguesa de Portugal, (apesar do novo acordo ortográfico entre os países que falam a Língua Portuguesa serem firmados) existem várias expressões e palavra que diferem da nossa Língua Portuguesa.  Além disso, no Brasil existe também a LSKB que é a Língua de Sinais Kaapor Brasileira utilizada pela tribo indígena Urubus-Kaapor no Maranhão.

            DIREITOS – Em que data é comemorada o ‘Dia do Surdo’ no Brasil e qual a importância histórica desta data?

Alessandra Palmeira – Antes de responder a esta pergunta, permita-me contar um pouco da história de Ernest ou Édouard Huet, filho de família nobre da França, antes dos 12 anos já falava francês, português e alemão, com 12 anos de idade aprendeu a falar espanhol mesmo após ter ficado surdo por causa do sarampo, em seguida foi estudar no Instituto Nacional de Surdos de Paris. Depois de longos estudos se tornou professor e desenvolveu belíssimo trabalho na área de educação de surdos; posteriormente casou-se com uma alemã e em seguida foi convidado por Dom Pedro II a vir morar na Corte de Portugal no Brasil. Com isso, em 1855 Huet apresenta um projeto que é imediatamente aceito por Dom Pedro II e assim no dia 26 de setembro do ano de 1857 foi inaugurado no Rio de Janeiro o Imperial Instituto de Surdos-Mudos, primeira escola para surdos no País que até hoje é a maior referência para a Comunidade Surda. Atualmente intitulado como Instituto Nacional de Educação de Surdos – INES. Devido as conquistas pessoais e sociais de Huet que lutou pela educação dos surdos e pela criação desta tão nobre instituição de ensino é que hoje comemoramos o Dia Nacional do Surdo no dia 26 do mês de setembro.  

DIREITOS – Percebe-se que algumas pessoas não sabem ao certo a diferença entre surdos, surdos-mudos e deficiente auditivo. O que os diferenciam?

Alessandra Palmeira – Para o Construto Cultural da Surdez a palavra surdo, é aceita culturalmente pela Comunidade a qual pertence e a Língua de sinais é entendida como Língua natural; neste o Surdo é visto como uma Pessoa. E no Construto Médico da deficiência utiliza o termo deficiente auditivo para retratar uma surdez patológica na qual estabelece o conceito de normal e anormal e propõe a normatização através do tratamento ou da “cura” para a surdez, para este o Surdo é visto como Deficiente, assim como o termo Surdo e Mudo é para aquele além de ter a deficiência auditiva também não consegue fazer uso do aparelho fonador ou por ter complicações na região cerebral responsável pela fala e linguagem apesar desta deficiência existir o percentual é menor do que a surdez.  Os equívocos historicamente construídos, não mais são aceitos porque os surdos podem falar pois não há nenhum problema ou deficiência na região responsável pela fala. 

DIREITOS – Como as pessoas que tem surdez se sentem ao ser referenciadas como deficientes?

Alessandra Palmeira – Gostaria de interpretar agora a fala de um deles! Espero com esta narrativa expressar o que senti e como o surdo se sente tratado como deficiente.  Numa determinada aula, Tacio (instrutor surdo) virou-se para mim e disse: “Que pena que aquele aluno é cego!” Me assustei e disse: e você também não tem deficiência?! Ele olhou para mim de cima a baixo e disse: “É diferente!” nisso a turma estava toda atenta e interessada para que eu interpretasse a nossa conversa falei pra turma o que estávamos conversando e Tacio pediu para se explicar, virou para a turma e disse: “Onde está minha deficiência?” Eu quase abria a boca e sinalizava para ele, mas lembrei – me dos ensinamentos de minha mãe “observe o que a Bíblia diz… todo homem seja pronto a ouvir e tardio no falar”, assim esperei, e ele mesmo respondeu “Seria na comunicação, como eu tenho uma Língua para me comunicar… vocês precisam aprender Libras! Porque quem me faz deficiente são vocês.” Engoli a saliva, balancei a cabeça e toda a sala o aplaudiu. Me emociono todas as vezes que narro esta situação. Agora acredito que a explicação fará mais sentido para os leitores deste jornal. No Construto Cultural da Surdez a palavra surdo, é aceita culturalmente e a Língua de sinais é entendida como Língua natural desta minoria linguística; neste contexto o Surdo é visto como uma Pessoa e não como um deficiente.

DIREITOS – Nessa sua trajetória de Inclusão deve existir diversas situações que marcaram a sua vida como profissional. Conte-nos alguma dessas experiências.

Alessandra Palmeira – Irei continuar neste cenário onde havia um surdo convidado para interagir com os alunos de fisioterapia da Unime quando surpreendida entrou na sala um aluno com uma bengala, imediatamente respondi ao seu cumprimento e já estava na expectativa de ir ajudá-lo a encontrar sua sala, mas logo percebi que a turma dele era aquela mesma e que ele entrou, e como qualquer outro aluno veio para participar das aulas de Libras comigo. Não sabia que aquela situação provocaria uma das mais belas e marcantes experiências com a Língua de Sinais, pois como professora tive que me desdobrar, desconstruir para reconstruir minhas propostas para o ensino e a aprendizagem e aprendi a ser versátil.  Naquele dia iria apresentar as propostas da disciplina, mas decidir interagir mais com a turma e com isso apresentar que Libras é uma Língua gestual/visual e que todos ficassem à vontade para questionar, de antemão o aluno com deficiência visual faz uso da palavra e diz: “Eu vou ver, se eu gostar da disciplina eu fico!” Todos riram e eu o parabenizei explicando a turma que ele estava respaldado, se não quisesse cursar aquela disciplina, e que também se optar em cursar eu iria precisar do envolvimento de todos, prontamente a turma aceitou. Fiz uma explanação como são organizados os sinais, e além de utilizar Libras Tátil… pedi a turma para que me ajudassem a utilizar da linguagem do curso para tornar mais compreensível os sinais realizados e de tal modo dar mais sentido e significado para eles. Com isso, passamos a utilizar os movimentos artrocinemáticos, os movimentos em supinação, pronação, aproveitamos as nomenclaturas das partes das falanges para clarear os parâmetros da Libras. Então numa dessas aulas, para mim inovadoras, o aluno (com deficiência visual) me solicita que deseja falar com Tacio (o surdo), queria dizer para ele que tem prazer em conhecê-lo e que está gostando muito de aprender Libras. Ensinei as frases solicitadas, convidei o Surdo a se posicionar em frente ao aluno. E assim esta foi uma das turmas que mais se destacou inclusive durante a avaliação do MEC, os próprios alunos vieram eufóricos para me contara que informaram para os avaliadores que o curso era tão bom e surpreendente que dentre todos os avalies positivos sobre o curso eles sabiam até conversar com pessoas surdas e orientá-las durante uma seção de fisioterapia. Este brilho que a inclusão promove, não tem preço! 

DIREITOS – Atualmente muito se fala em Intérpretes de Língua de Sinais.  Esta pessoa atua como voluntário?

Alessandra Palmeira – O Intérprete é um profissional que tem capacitação ou habilitação e atua em diversas situações como: igrejas, escolas, palestras, fóruns judiciais, programas de televisão etc. No Brasil, o intérprete deve dominar a Língua Brasileira de Sinais e Língua Portuguesa. Sua atuação na maioria das vezes tem ido além da função profissional, pois apesar da Libras ser a segunda língua oficial do Brasil, há diversos ambientes que não tem sequer uma pessoa para interpretar o Surdo, desde o informar qual dor está sentindo, cor de roupa deseja adquirir, compreender por meio da datilologia o seu nome, ou até mesmo em mediar conflitos familiares sem que um membro da família ou um amigo/amiga intérprete esteja com ele. Isso tem confundido tal profissão como trabalho voluntário, pois os interpretes tornam-se amigos dos Surdos e quando percebem suas necessidades e são convidados a ajudá-los, não medem esforços. Parabenizo aqui a todos intérpretes da Língua de Sinais e também à Juíza de Direito Márcia Cristie Leite Vieira por promover a iniciativa em agosto de 2017, na Comarca de Itabuna, o 1º Júri do Brasil com tradução simultânea na Língua Brasileira de Sinais (Libras), Isso valorizou a profissão do intérprete de língua sinais e nos chama a responsabilidade de não só oportunizar, mas possibilitar a inclusão das pessoas Surda em todas as esferas da Sociedade.

DIREITOS – Sabemos que já realizou sete encontros de Surdos aqui em Itabuna. Conte-nos um pouco desta trajetória com relação a Comunidade Surda e quem apoia essa proposta.

Alessandra Palmeira – Fazendo aqui uma rápida retrospectiva, comecei a lecionar a disciplina Educação Física Especial no ano de 2000 na Faculdade Montenegro. Em 2008 participei de uma seleção com aula pública para lecionar a disciplina Educação Física Adaptada assim ingressei também como professora da Unime e em 2009 fui incentivada pelo professor Wolney Gomes (que era o professor de Libras desta IES), e pela a coordenadora do Curso de Educação Física Cleri Sauer a assumir as aulas de Libras deste curso, pois naquele ano as faculdades reajustavam suas matrizes curriculares para incluindo nos cursos de licenciatura a disciplina Língua Brasileira de Sinais. A demanda era muita então assumi a proposta e neste mesmo ano conheci Adinéia Oliveira que trabalha no Centro Psicopedagógico da Educação Inclusiva – CEPEI, que nos convidou a realizarmos atividades esportivos e recreativas para todos os alunos atendidos ali. Junto com os alunos da disciplina Educação Física Adaptada organizamos as atividades que foram monitoradas pelos alunos da Unime.

E de lá para cá organizamos um evento para os Surdos e suas famílias, deu certo e cada dia fomos aprimorando o evento, mas sempre em pareceria com o Cepei e a Secretaria de Educação da prefeitura de Itabuna. Para a realização, contamos com os brilhantes alunos dos cursos da Unime, pessoal de apoio, e diversos colegas; atingindo além da nossa região as cidades de Salvador, Feira de Santana e Vitória da Conquista com o Evento Encontro de Surdos em Itabuna para comemorar o Dia Nacional dos Surdos que ocorre no mês de setembro. Advieram: Oficinas de Capoeira, de Dança, e o Torneio de Futsal para Surdos intitulado Walber Bruno em homenagem ao ex-aluno do curso de Educação Física que muito contribuiu na logística do primeiro evento; temos também como relevância social: orientações e agendamentos psicológicos (com alunos do curso de psicologia), teste glicêmico (alunos do curso de Enfermagem), Avaliação e orientação Postural (alunos do curso de Fisioterapia), Contação de Histórias Infantis em Libras (pelo CEPEI e alunos de pedagogia). Com o apoio e envolvimento dos Interpretes: Lorena, Lucília, Thais, Neuma, Kerson, Pedro, Ivanilda, Wasley; e Wolney os quais atuam, como palestrantes, oficineiros e Intérpretes durante os dias do evento. Tal acontecimento tem contribuído para o crescimento acadêmico de alunos de diversas instituições de ensino e se tornou de grande relevância para a Comunidade Surda, possibilitando que surdos, interpretes e pessoas interessadas em aprender Libras conheçam também sobre as necessidades das pessoas surdas. Contamos, assim, com o apoio e envolvimento das Associações de Surdos das cidades de Itabuna, Ilhéus e Canavieiras e dos palestrantes, instrutores e professores Surdos: Moabe, Luciano, Tacio, Lindomar, Roberta, Priscila e Laiza os quais apresentam novas propostas e temas para serem discutidos.

DIREITOS – O que tem pensado para este momento de Pandemia? Alessandra Palmeira – Começamos a esboçar algumas ideias para os futuros Encontros, porém o que de imediato precisamos é lutar pelo direito à informação e cuidados para com a higiene e saúde das pessoas surdas. Por ser uma Comunidade Linguística minoritária, são esquecidas nas suas necessidades básicas. Neste período de pandemia o meio de comunicação mais acessível seria a televisão, mas não há interpretação simultânea da Libras e muitas vezes nem legenda eletrônica, o que não simplesmente dificulta a compreensão, como também excluem as pessoas surdas das informações essenciais para preservação da sua vida.