Notícia

O direito à cultura

Efson Lima

Os seres humanos dotados de capacidade reflexiva têm o raciocínio como um demarcador que os coloca em um patamar privilegiado entre os seres vivos. Essa capacidade de elaboração se manteve ao longo da trajetória humana, mas exige compromisso com o acesso aos bens culturais, estabelece limites para usufruí-los e a necessidade de ser compartilhado.  Para essa discussão, faz-se necessário esboçar o que possa ser cultura, segundo o Dicionário Aurélio entre alguns conceitos, cultura é “o conjunto de características humanas que não são inatas, e que se criam e se preservam ou aprimoram através da comunicação e cooperação entre os indivíduos”.

O direito à cultura deve ser compreendido como “… aqueles afetos às artes, à memória coletiva e ao repasse de saberes, que asseguram aos seus titulares o conhecimento e uso do passado, interferência ativa no presente e possibilidade de previsão e decisão de opções referentes ao futuro, visando sempre a dignidade da pessoa humana”, segundo Humberto Cunha Filho.  Portanto, o direito cultural é um campo que se apresenta como uma necessidade da natureza humana. Próprio de uma sociedade que deseja preservar seus valores e colaborar com o progresso da humanidade. É a afirmação da soberania por meio da valorização das produções de seu povo. É a autodeterminação de sua gente no plano internacional.

Vários temas têm perfilhado o direito cultural. Por sinal, o direito cultural não é uma ilha. Ele estabelece interface com outros ramos do direito. Ao tratar de tombamento, precisa-se recorrer ao direito administrativo; o próprio arcabouço jurídico sobre cultura está previsto na Constituição Federal ao prevê, no art. 215, que o Estado garantirá a todos o pleno exercício dos direitos culturais e acesso às fontes da cultura nacional, e apoiará e incentivará a valorização e a difusão das manifestações culturais. Ainda na Constituição é possível encontrar alguns exemplos do que a doutrina especializada tem concebido como espécies de direitos culturais: o direito autoral (artigo 5º, XXVII e XXVIII); o direito à liberdade de expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação (artigos 5º, IX, e 215, §3º, II); o direito à preservação do patrimônio histórico e cultural (artigos 5º, LXXIII, e 215, §3º, inciso I); o direito à diversidade e identidade cultural (artigo 215, caput, § 1º, 2º, 3º, V, 242, § 1º); e o direito de acesso à cultura (artigo 215, §3º, II e IV).

O direito municipal se ocupa também do debate cultural por meio das leis orgânicas, o financiamento da cultura tem dialogado com o direito tributário seja no plano federal seja no estadual, assim como o debate na seara do direito educacional.  O patrimônio cultural é uma das faces do direito ambiental.  O próprio direito à cultura decorre de um direito humano. Há quem também advoga na defesa do direito humano à literatura, visto que […] a literatura corresponde a uma necessidade universal que deve ser satisfeita sob a pena de mutilar a personalidade, porque pelo fato de dar forma aos sentimentos e à visão do mundo ela nos organiza, nos liberta do caos e portanto nos humaniza.”

Defender o direito à cultura é também reconhecer a cultura popular e as suas diferentes manifestações, inclusive, no tocante aos aspectos religiosos. Perpassa por um estado laico, mas também um Estado que não permita seu patrimônio religioso sucumbir, assim como os terreiros. A laicidade estatal não pode ser impeditiva para a restauração do patrimônio religioso.

O direito cultural tem recebido cada vez mais um tratamento específico, mas precisamos de mais pessoas dedicadas ao estudo do campo. As instituições universitárias precisam incorporar nas suas grandes de ensino. Uma sociedade que se ocupa do direito cultural significa que ela está preocupada com a sua memória e como o seu povo acessa essa memória e faz uso dela. Não há democracia sem o acesso e a usufruição dos bens culturais, inclusive, com a valorização das expressões populares. A comunidade também é produtora de cultura, talvez, cuidamos de negá-la ao direito da reflexão, assim é mais fácil impor as ordens e os valores. Até quando? Não nos interessa uma sociedade subserviente, interessa-nos uma sociedade questionadora e propositiva. Os déspotas e populistas estarão mais distantes dos nossos cenários eleitorais. A área jurídica não pode ser conservadora no debate do tema quanto ao direito à cultura. Estamos aquém quando comparado com outras áreas.

Por Efson Lima.

Doutor e mestre em direito/UFBA. Advogado, professor universitário, escritor e organizador do Festival Literário Sul-Bahia (FLISBA). Membro – eleito para Academia Grapiúna de Letras (AGRAL).

E-mail: efsonlima@gmail.com